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29.11.14

MEMÓRIAS

Chove sempre.
 As árvores, despojadas de fruto, não podem com o peso da humidade; à volta os montes negros deram um passo e aproximaram-se maiores e mais espessos. Crepes no céu e gotas caindo num ruído de quem avança ao de leve. E cheiro, cheiro a terra aquecida e molhada, cheiro a folhas que fermentam pelo chão.
 Vêm aí as noites negras e aquela voz cavernosa que me faz encolher na enxerga: - o vento que clama às portas e dá o primeiro encontrão às vidraças.

   Não é ainda inverno, mas os melros já debicam a baga dos loureiros, e os estorninhos desgarrados puxam a azeitona às oliveiras.


   Logo depois das lufadas, dias parados e mornos com sol coado por névoas, todos brancos e meio adormecidos. O caseiro com o seu velho casaco de remendos apõe os bois para carregar um carro de mato.

 Assim que este fantasma branco se esvai, tornam os dias lípidos. E agora vereis ! A tília ergue-se
no azul toda de oiro, os choupos esguios estremecem, e a vinha esfarrapa-se cor de mosto entre as leirinhas viçosas e os montes roxos e pasmados. Está frio.

 Já apetece comer os gaipelos que ficaram esquecidos pelos podadores, transparentes, gelados e doces como mel. Passo horas extasiado na vinha com medo de me mexer, e todos os dias  pergunto : - É o último ? - o tempo está para morrer.

Às primeiras chuvas pesadas o doirado desaparece no negrume. tremo pela luz, pelo esplêndido Outono que está por um fio. E sinto tudo isto com delícia, como quem está para morrer... *

Raul Brandão. Memórias III