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15.7.20

FAMÍLIA REAL. AS EXTRAVAGÂNCIAS DE SUAS MAGESTADES.











Os hábitos e as extravagâncias da família real nas férias

O sinal de entrada de D. Carlos e D. Amélia no parque foi dado por uma orquestra de violinistas empoleirados nas árvores. Do portão até à casa, ao longo de um tapete coberto por um toldo de seda às riscas azuis e brancas, alinhavam-se os criados da Casa Palmela, que empunhavam candelabros e trajavam o seu uniforme de galões de ouro, calções verdes de veludo e luvas brancas. O baile sumptuoso, assim descrito por Ramalho Ortigão, foi preparado pela duquesa de Palmela e deslumbrou D. Amélia, que se estreou desta forma na sua primeira festa em Sintra, em 1886, logo a seguir ao seu casamento e antes da lua-de-mel no Palácio da Pena.

Nas duas décadas seguintes, foi em Sintra que a família real iniciou os seus longos períodos de férias, muitas vezes superiores a quatro meses por ano, e que incluíam ainda longas estadias em Cascais, em Mafra, no Vidigal ou em Vila Viçosa. Um dos primeiros pontos altos do Verão tinha aliás data marcada: 31 de Julho, o aniversário do irmão do Rei D. Carlos, o infante D. Afonso. Os festejos começavam com recepções ao início da tarde, no Paço da Pena, e prolongavam-se até à noite, com um baile de gala na Sala dos Cisnes do Paço de Sintra, ao som de valsas tocadas pela banda de Infantaria 1. Em 1895, na página 3 do Diário Ilustrado, na secção de High life – o equivalente da época às revistas sociais – a notícia do acontecimento terminava com a lista de presenças, que se estendia por 50 linhas, e incluía os principais membros da aristocracia, mas também o presidente do Conselho, Hintze Ribeiro, e cinco ministros.

Ao contrário do que possa parecer pelos convidados, o infante D. Afonso não exercia qualquer influência na corte. "Nunca tinha vintém.
 Os ajudantes ou oficiais às ordens não lhe emprestavam dinheiro, porque sabiam que ele não lhes pagava", desvenda Raul Brandão nas suas memórias.

 A partir de 1902, o irmão do Rei tornou-se comandante honorário dos bombeiros, pelo que dispunha de um telefone especial em casa para ser informado das principais ocorrências.
Mas sobressaiu essencialmente devido à sua paixão pelos carros.
Ganhou até a alcunha de Arreda – por ser esse o grito que dava aos peões para se desviarem do caminho, numa altura em que só havia uma centena de automóveis em todo o País.

Numa carta ao irmão, citada na biografia de Rui Ramos sobre o penúltimo Rei de Portugal, falava com entusiasmo sobre o automóvel comprado em Itália (era fã da FIAT), que tinha "oito cavalos de força" e no qual atingiu a estonteante velocidade de "50 km em descidas, e 40 a 50 em caminho direito".



Um ano depois, em 1901, foi publicado o primeiro Código da Estrada, que impunha um limite máximo de 10 km por hora. Seguramente por excesso de velocidade, o infante protagonizou um dos primeiros desastres em Portugal, quando o carro derrapou, na estrada entre Sintra e Cascais – os jornais de 27 de Agosto de 1906 deram conta desse acidente, que deixou "Sua Alteza com uma costela quebrada".

O Rei D. Carlos também gostava de automóveis e há relatos de que chegou a ter sete da marca Peugeot – três deles (um 12 cavalos, um 18/24 e um 20 cavalos) foram comprados no mesmo dia, em 1906, quando foi inaugurado o stand dos Restauradores, e onde esteve presente o próprio fundador, Armand Peugeot, que veio de França para cumprimentar o seu melhor cliente em Portugal. Foi nestas viaturas que os príncipes, Luís Afonso e Manuel, aprenderam a conduzir.

13 mil lanternas de azeite e 9 mil balões

Era apenas no fim de Setembro que, todos os anos, os Reis trocavam o Palácio da Pena pelo Palácio da Cidadela, em Cascais, onde ficavam em regra até ao início de Novembro. A vila recebia-os com todo o aparato. Por exemplo, a 17 de Setembro de 1891, as famílias aristocratas e as autoridades foram esperar o casal real a Alcabideche – zona então conhecida como "rio dos Algarves".
Segundo o livro Uma Corte à Beira-Mar, de Margarida de Magalhães Ramalho, que cita a imprensa da época, "no meio de uma chuva de flores e bouquets e de entusiásticos vivas" formou-se um cortejo de 140 carruagens e 50 cavaleiros. No fim de uma cerimónia na igreja da vila, o casal real deslocou-se a pé até à cidadela, por entre o povo, enquanto eram libertadas centenas de pombas para os céus de Cascais. Nessa noite, estava tudo preparado para um magnífico espectáculo de fogo-de-artifício, mas um incêndio destruiu a roda do leme do iate de onde ia ser lançado.

Já não foi assim seis anos depois, quando os Reis receberam na sua residência de férias o Rei Chulalongkorn, do Sião (actual Tailândia): este monarca ficou espantado com os efeitos pirotécnicos de uma peça que ardeu no mar e "se transformou num elefante branco com movimentos na tromba", descreveu o Diário de Notícias em Setembro de 1897. O areal entre Estoril e Cascais foi iluminado com 13 mil lanternas de azeite e 9 mil balões, entre outros adereços – o rei oriental achou tudo exótico e comentou com o anfitrião que se sentia como se tivesse sido "transportado a um dos castelos encantados das Mil e Uma Noites".

Foi o pai de D. Carlos, o Rei D. Luís, que mandou fazer obras no Palácio da Cidadela, para alojar a família real nos meses de veraneio. Espalhado por quatro quarteirões e dois pisos, o edifício tinha no total 44 quartos ou salas, onde dormiam e trabalhavam os elementos mais influentes da corte – o oficial às ordens do Rei, o camarista, o administrador da casa real, o médico, o capelão, as damas da Rainha, os preceptores dos príncipes, os chefes das cavalariças e da manutenção. Havia ainda uma sala de recepção, sala de jantar e de bilhar, e, claro, os quartos dos criados.

Quando era criança, D. Carlos ia distribuindo tostões aos populares que lhe beijavam as mãos quando chegava à praia de Belém.
 Vinte anos depois, na praia dos pescadores, em Cascais, a frequência já era mais distinta: o areal era partilhado com a aristocracia e a alta burguesia que passou a fazer férias ali para estar perto do Rei – apesar de a vila cheirar mal e de os jornais insistirem que a praia da Ericeira é que era boa.

A festa de aniversário dos reis

D. Carlos tomava banho no seu fato de malha às riscas, que cobria os ombros e chegava aos joelhos. Depois de dar as suas braçadas, numa altura em que a maioria das pessoas não sabia nadar, saía do mar e ia a pingar até à barraca real, onde mudava de roupa – na barraca, sempre que o Rei estava na praia, era hasteada a bandeira nacional.


D. Amélia e os príncipes preferiam tomar banho noutra praia, que é hoje conhecida como praia da Rainha. No fim da monarquia, as senhoras entravam no mar de vestido de cauda e com toucas de folhos, de mão dada com o banheiro, "que começava por lhes despejar um balde de água pela cabeça", contou nas suas memórias o conde de Mafra, Tomás de Mello Breyner, que foi médico da família real, e bisavô do escritor Miguel Sousa Tavares.

Todos os anos, à medida que se chegava ao fim de Setembro, os jornais agitavam-se. "Com a vinda definitiva de Suas Majestades é que verdadeiramente começa a época de Cascais", admitia-se na capa do Diário Ilustrado, a 25 de Setembro de 1900. O Rei e a Rainha faziam anos no mesmo dia, a 28 de Setembro, um acontecimento cheio de festividades anunciadas nos jornais com várias edições de antecedência. Era decretado feriado em todas as repartições públicas, os militares tinham direito a um rancho melhorado e a companhia dos caminhos-de-ferro aumentava o número de comboios em circulação na linha recentemente inaugurada, para satisfazer a procura do povo, que se deslocava em massa de Lisboa para assistir às festas reais.

O dia de aniversário começava com uma missa, acompanhada pela banda do Regimento de Infantaria 2. Os aniversariantes eram brindados com salvas de tiros da fortaleza, a que respondiam meia dúzia de navios de guerra ancorados na baía, onde estavam várias outras embarcações engalanadas.
 À noite, pelas 20h, iniciava-se um jantar de gala, para o qual apenas eram convidados os casais de duques, marqueses e condes que acompanhavam a família real, o médico, o padre e os comandantes dos barcos militares fundeados em Cascais.

As trocas de roupa do embaixador

Presença obrigatória era o marquês de Soveral, embaixador de Portugal em Londres, e amigo influente do casal real, a quem era concedido o privilégio de passar o Verão na cidadela, apesar de não ter qualquer cargo na corte. Era ele que trazia as músicas que mais se ouviam na Europa aos maestros das bandas militares que animavam o serão.

Este diplomata, que também exerceu temporariamente as funções de ministro dos Negócios Estrangeiros, era uma figura excêntrica, com o seu bigode viçoso e os seus trajes modernos. Eça de Queiroz chamava-lhe "o maior dandy de Portugal" e as suas constantes trocas de roupa eram noticiadas na imprensa: "Foi ontem visto em Sintra numa encantadora toilette bleu marin [azul marinho] e boné de pala o ilustre e formosíssimo ministro. À tarde viram-no passar elegantemente vestido de flanela cor de cana verde e chapéu cor de abóbora madura de mais. Pelo crepúsculo ia adorável e rayonnant [radiante] num irrepreensível costume cor de flor de alecrim com o delicioso chapéu de palha." Mas de tal forma era encarado como pioneiro em Lisboa dos novos hábitos cosmopolitas, que um dia se esqueceu das luvas na aba do chapéu de coco ao sair do Tavares e percorreu assim uma longa distância pelo Chiado, o que levou alguns transeuntes a imitá-lo, arrumando as luvas no chapéu como se fosse a nova moda trazida do estrangeiro.

O jornal Echos de Sintra, citado por Archer de Lima em O Marquês de Soveral e o Seu Tempo, contabilizou num ano a bagagem com que o diplomata chegou ao Palácio de Cascais para as férias: "Oito malas grandes, 12 malas pequenas, fora chapeleiras, bengaleiras, etc. e não contando com o chapéu de coco cor de abóbora que ia na cabeça."

Parte dos eventos de Verão em Cascais tinham fins de caridade, como as quermesses promovidas pela duquesa de Palmela. Os Reis eram um sucesso a vender rifas, mas numa destas festas no parque Palmela no início do século XX, o que deixou toda a gente pasmada foi a iluminação eléctrica e a projecção de três filmes num animatógrafo. Fora tudo organizado pela duquesa de Palmela, que além de ser camareira-mor da Rainha e fundadora das cozinhas económicas onde se forneciam refeições para os pobres, era também, segundo Raul Brandão, uma das mulheres mais bonitas da época, juntamente com a condessa de Penamacor, a condessa de Ficalho, a condessa de Vila Real e Ana de Sousa Coutinho, filha do conde de Linhares.

As regras elegantes do Clube da Parada

O ponto de encontro da vida social no fim do Verão era o Sporting Clube de Cascais, mais conhecido por Clube da Parada, um espaço a que apenas a chamada "sociedade elegante" tinha acesso. No clube toda a gente se tratava por "você", era regra fazer-se "um ar muito chateado" e estavam proibidas palavras como chávena, trem, farmácia e Carnaval, segundo as Memórias da Linha de Cascais, de Branca Gonta Colaço e Maria Archer. Ali, as senhoras jogavam ténis envergando vestidos compridos e chapéus com véus de gaze. O Rei mandou instalar courts de ténis nos seus diversos palácios, incluindo na Cidadela, mas também jogava na Parada, deixando um oficial a segurar-lhe o sobretudo durante o desafio.


D. Carlos tinha sucesso sobretudo em jogos de pares, que não o obrigavam a correr tanto, uma vez que foi engordando e perdendo mobilidade – acompanhava tudo com pão e manteiga, como o pai, e comia em todas as refeições canja, galinha com arroz e enchidos, além dos outros quatro a cinco pratos rotativos da ementa. Era ainda um fumador inveterado de charutos da marca Aquila Imperial.

Apesar de ser gordo – e de entretanto lhe ter sido diagnosticada diabetes – praticava também remo e era um atirador exímio: disparava contra pombos, mas também chegou a mandar atirar pratos para o mar, para afinar a pontaria do seu tiro.

 Em 10 de Outubro de 1900, participou na zona do Guincho numa inédita batida às raposas, mandadas vir do Alentejo. E organizou ainda torneios de esgrima e de futebol – que nesta altura era conhecido como "jogo do pontapé".

Os quatro iates e as campanhas no mar


Mas o seu principal passatempo em Cascais era explorar o mar no seu iate. A partir de 1896 desenvolveu 12 expedições para inventariar a fauna subaquática na costa portuguesa. As campanhas oceanográficas, pelo espaço que exigiam em alto mar para ter, por exemplo, um laboratório a bordo, levaram o Rei a adquirir sucessivamente quatro iates, todos baptizados com o nome da mulher. O Amélia I tinha apenas 34 metros de comprimento, menos de metade do que media o Amélia IV, comprado em 1901, que atingia 70 metros e 1.370 toneladas.


Comprou outros dois iates para oferecer à Rainha: o Lia, em 1893, e o Maris Stella, em 1905. D. Amélia chegou aliás a fazer um cruzeiro no Mediterrâneo com os filhos, durante o qual se encontrou com vários membros da realeza europeia e pôde desfrutar do conforto do seu iate, que tinha piano, aquecimento central, várias lareiras e água canalizada, doce ou salgada. Quando recebeu o novo veleiro como prenda de aniversário, a Rainha cedeu o Lia à Corporação dos Pilotos do Rio e Barra do Tejo, conta Eduardo Nobre no livro Amélia, Rainha de Portugal.

As extravagâncias da rainha-mãe

As campanhas de exploração dos mares podiam durar meses, sempre com o Rei em alto mar, o que levava uma boa parte do País a ver em D. Carlos um esbanjador despreocupado, que tinha encontrado mais uma forma de diversão e de alheamento dos problemas do País. A fama e o exemplo da Rainha-mãe, D. Maria Pia, não o ajudava. Depois da morte do marido, o Rei D. Luís, em 1889, na Cidadela, ela não quis voltar a este Palácio e decidiu comprar um chalé na marginal, no Monte Estoril, onde passava longas temporadas com o seu filho mais novo, o infante D. Afonso.

A Rainha-mãe, seguramente a figura mais extravagante da família, em claro contraste com a nora, gastou uma fortuna em obras de arte, pratas, sedas e móveis para mobilar a sua nova residência de férias, apesar de as finanças reais estarem já em ruptura.
 Pediu então dinheiro emprestado ao conde de Burnay, o homem mais rico no fim da monarquia, e como caução deixou-lhe jóias, que recuperaria assim que saldasse a dívida – o banqueiro acumulou 369 peças de ourivesaria da Rainha-mãe, que foram leiloadas em 1912 para recuperar o dinheiro emprestado, segundo Eduardo Alves Marques, autor do livro Se as Jóias Falassem.

Numa altura em que já estava cheia de dívidas à ourivesaria Leitão & Irmão, que enviava cartas à Rainha-mãe a solicitar a regularização das contas, D. Maria Pia conseguiu pagar o que devia, mas imediatamente contraiu novo empréstimo no valor de 350 mil reis para comprar um faqueiro de prata para a sua casa de férias.

Este serviço de prata era aliás o terror dos empregados sempre que a Rainha-mãe os mandava servir o jantar na praia. "Armava-se uma grande barraca de lona, mas era um castigo para nós, a enterrarmo-nos na areia, e sempre com medo de que lá ficasse perdida alguma colher de prata. (…) Às vezes fazia-se noite, cerrava-se o nevoeiro, e não sabíamos por onde andávamos, com o serviço às costas. A sr.ª D. Maria Pia não percebia as dificuldades por que passávamos. Não descia a certas coisas, e ninguém se atrevia a dizer-lhe nada", queixou-se Vital Fontes, que foi criado da monarca e deixou um livro de memórias, Servidor de Reis e de Presidentes.

O piano e o primeiro elevador...

Outros dramas viviam-se nas deslocações do Palácio da Ajuda para as férias em Mafra. "Para fazer as coisas como a sr.ª D. Maria Pia desejava, tinha de se andar dum lado para o outro com carrões de móveis e roupas, porcelanas e cristais, tudo enviado com dias de antecedência para estar já armado quando a Rainha chegasse. (…) Da Ajuda para Mafra ia (...) até um piano, e logo atrás o afinador, que com a sr.ª D. Maria Pia tinha que andar tudo afinado", frisa o criado da Rainha. O conde de Mafra, Tomás de Mello Breyner, confirma nas suas memórias que a família real mandava transportar para ali todos os anos os fogões de sala, as braseiras e o piano, que era carregado por oito homens que faziam a pé a viagem de 40 quilómetros.

Foi em Mafra que a Rainha-mãe mostrou os primeiros patins vistos por Vital Fontes. Outra excentricidade da época foi "o primeiro elevador que se conheceu em Portugal", como lhe chamou o criado, que o descreveu assim: "Era capaz de subir 10 pessoas, mas à custa doutros tantos homens que o puxavam à corda."

Raul Brandão contou nas suas memórias que D.Maria Pia estava constantemente a fumar charuto e a atirar as pontas para onde calhava, sobre os sofás e os tapetes, o que deixava sempre o criado em sobressalto, com receio de que deflagrasse um incêndio.
Vista como uma mulher nervosa, que reagia mal ao bater de uma porta, não usava perfumes, por lhe provocarem dores de cabeça. A sua despreocupação com o orçamento familiar foi ao ponto de, no dia em que nasceu o seu primeiro neto, o príncipe D. Luís Filipe (filho de D. Carlos e D. Amélia), ter oferecido relógios de ouro a todos os fidalgos.

As infidelidades do Rei

A Rainha-mãe foi traída pelo Rei D. Luís com várias mulheres, o que era normal na época, mas ela também terá mantido uma ligação extraconjugal com o conde de Sousa Rosa. O filho, D. Carlos, protagonizou outra conturbada história amorosa. Segundo a biografia do historiador Rui Ramos, em Lisboa falava-se das infidelidades do Rei com as "três condessas favoritas" – a de Paraty, a da Guarda, e a viúva do diplomata brasileiro César Viana de Lima. Um jornal republicano publicou que o monarca era amante da filha do seu ajudante-de-campo. E, em Junho de 1904, circulou a notícia de que D. Carlos tinha morrido no seu iate, depois de uma orgia com uma prostituta francesa enviada por uma empresa que pretendia obter um contrato.

D. Amélia anotava no seu diário várias escapadelas do marido que a deixavam desconfiada e, depois da morte do Rei, descobriu uma caixa com uma série de cartas que comprovavam as suas aventuras amorosas, segundo o livro Amantes dos Reis de Portugal, de Paula Lourenço, Ana Cristina Pereira e Joana Troni.

Segundo o criado da família real, Vital Fontes, D. Carlos tinha um fraco por espanholas. E Raul Brandão escreveu que o Rei manteve uma amante no Monte Estoril durante um ano e ia todas as tardes para a zona da Boca do Inferno, perto de Cascais. "Quedava-se ali, se encontrava algumas senhoras que o interessassem. Por isso chegaram a chamar a D. Carlos o balão cativo".


Longe do mar, o grande prazer do Rei era a caça. Nas férias em Mafra, as caçadas prolongavam-se por três dias. No palácio com 11 quartos dispunha de uma cama exactamente igual à que tinha em Vila Viçosa ou no Palácio das Necessidades, para não estranhar e atenuar insónias, segundo o livro "D. Carlos, Atirador de Caça", de Águedo de Oliveira.

Quando escolhia para descansar a herdade do Vidigal, de 5 mil hectares, mais próxima de Lisboa, perto de Vendas Novas, entretinha-se a ver alguns fidalgos a brincar às touradas, outro espectáculo que o entusiasmava. Aliás, numa carta ao seu secretário particular, o conde de Arnoso, citada por Rui Ramos, mostrou-se divertido com uma tourada numa herdade de Alter do Chão, apesar de o touro ter saltado para onde estava a assistência e atingido meia dúzia de espectadores: "Tu não podes imaginar a alegria, a bulha, o verdadeiro inferno que isto foi, e felizmente sem uma sensaboria; apenas um criado com uma perna rasgada."

Alguns dos momentos mais felizes da família eram passados em Vila Viçosa, onde o paço era rodeado por uma tapada com cerca de 1.700 hectares, um terço dos quais destinado a caça. Deslocavam-se ali para passar férias na Páscoa, ou no início do Verão, mas com mais regularidade para descansar todo o mês de Dezembro ou todo o mês de Janeiro.

Caçava-se todos os dias. O ponto de encontro era na Sala dos Duques, às 8h da manhã. O Rei envergava o traje regional do Alentejo, montava um cavalo luso-andaluz branco e era habitualmente quem matava mais caça, segundo as memórias do marquês do Lavradio. Um ritual especial era o almoço informal no campo, para onde o pessoal do palácio – que mesmo aí servia de luvas e libré – transportava tudo, incluindo um lavatório de ferro. Depois do jantar jogava-se bridge e conversava-se até às 23h, hora de recolher da Rainha e das suas damas de companhia, que deixavam a sala apenas para os homens ficarem a jogar às cartas. Era também depois do jantar que D. Carlos lia os telegramas do dia, enviados pelo chefe do governo ou pelos ministros, para se manter a par do que se passava no País.

Numa ocasião em que a Rainha não estava a acompanhar as férias em Vila Viçosa, foi o príncipe D. Luís Filipe que lhe descreveu um dia fracassado, com fairplay e sentido de humor, numa carta citada por Eduardo Nobre, autor de Amélia, Rainha de Portugal: "Ontem errei um porco muito grande e a Mãe não imagina o que foi a troça que me fizeram: ao jantar o Pai passou-me um papel dizendo-me que era da parte dos meus amigos, era um desenho de um porco triste, de outro contente e de um terceiro visto de frente: o visto de frente dizia: ‘Com os nossos agradecimentos.’"

Apesar das suas múltiplas deslocações, segundo Rui Ramos, o Rei só saía de Lisboa depois de obter licença do presidente do Conselho, e frisava que voltaria imediatamente se o governo entendesse que era necessário por qualquer razão.

Os dinheiros de D. Carlos

D. Carlos ganhava um subsídio do Estado anual (que se chamava Lista Civil) de 365 contos de reis, o que representava 0,7% da despesa do Estado em 1890. Daqui tinha de pagar todas as despesas de funcionamento da casa real, incluindo os salários dos 70 oficiais e ajudantes-de-campo, e dos cerca de 150 empregados, onde se contavam os criados, músicos e capelães. Recebia 12 vezes menos do que o Imperador alemão e um quarto do que auferia o Rei de Espanha – ganhava claramente menos do que gastava, o que lhe provocou vários dissabores políticos.

Também as longas temporadas nas herdades longe de Lisboa motivaram violentos ataques da oposição e da imprensa republicana, que o acusava de devorar os rendimentos do Estado "sem procurar ao menos dar a ilusão de que [os] merece".

A crítica mais demolidora foi feita pelo jornalista João Chagas, quando disse que, para o Rei, reinar era "S. Carlos, o Coliseu, o Trindade, quermesses, bailes, touradas, caçadas; hoje de almirante, amanhã de generalíssimo, aqui de flanela branca e rosas na botoeira, ali de jaleca alentejana e cinto à contrabandista, dando moñas [fitas] a forcados, jóias a actrizes, hábitos de Cristo a noticiaristas de jornais, numa doidice, num delírio, numa de pândega". Ao seguir com esta vida folgada, segundo João Chagas, o Rei D. Carlos tinha mostrado que não era um patriota – era apenas um "elegante" e um "dandy".

(Excerto de artigo publicado na SÁBADO em 19.8.2010)