José-Augusto França: O maior historiador de arte do século XX em Portugal
O
historiador, sociólogo e escritor José-Augusto França, que hoje morreu
aos 98 anos, referência maior da cultura e da História da Arte
portuguesa dos séculos XIX-XX, deixa uma vasta obra, que atravessa todos
os géneros, do ensaio à ficção.
18/09/21 22:36 ‧ Há 22 Horas por
Lusa
Cultura
Óbito/José-Augusto França
Historiador, sociólogo e
crítico de arte, José-Augusto Rodrigues França nasceu em Tomar, em 16 de
novembro de 1922, e destacou-se também com uma grande atividade no
ensino, criando os primeiros mestrados na área da História da Arte no
país.
José-Augusto França - que, no meio académico, é considerado
responsável por estabelecer um cânone na historiografia da arte do
século XIX e XX - costumava dizer, em entrevistas, que a sua ligação à
arte era "quase respiratória".
"A Arte em Portugal no Século XX", "O Retrato na Arte
Portuguesa" e o 3.º volume do "Dicionário da Pintura Universal",
publicado pela antiga editora Estúdios Cor, inteiramente dedicado à
"Pintura Portuguesa", que coordenou com Mário Chicó e Armando Vieira
Santos, constituem três marcos nesse cânone, numa obra que se estende
por mais de meia centena de títulos e décadas de trabalho e de
investigação.
Como autor de referência, na área das artes visuais e da cultura,
entre as suas obras destacam-se igualmente os estudos como "História da
Arte Ocidental 1780-1980", "Do Romantismo 1824, Antes e Depois", "Lisboa
Pombalina e o Iluminismo", "Os Anos 20 em Portugal" ou o ensaio
dedicado ao pintor flamengo do século XVI Hieronymus Bosch, autor das
"Tentações de Santo Antão", "Bosch o Visionário Integral".
Escreveu igualmente monografias sobre artistas como Amadeo de
Souza-Cardoso e Almada Negreiros, Rafael Bordalo Pinheiro, António
Carneiro, Columbano, José Malhoa, António Pedro. Foi um dos maiores
especialistas em Maria Helena Vieira da Silva.
Dedicou volumes de ensaios à interpretação e reflexão histórica,
sociológica e estética sobre problemas da arte contemporânea, como "Cem
Exposições", "Quinhentos Folhetins" e os "Oito Ensaios sobre Arte
Contemporânea", publicados nos anos de 1960, que marcaram desde então a
abordagem crítica da expressão artística.
No domínio da ficção, publicou um primeiro romance em 1949,
"Natureza Morta", seguindo-se, em 1958, um livro de contos, depois fez
um prolongado interregno, voltando a publicar com mais regularidade,
lançando obras como "Buridan" (2002), "A Bela Angevina" (2005), "José e
os Outros" (2006), "Ricardo Coração de Leão" (2007), "João sem Terra"
(2008) e "A Guerra e a Paz" (2010).
Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, em 1944, partiu para Paris como bolseiro do
Estado francês, em 1959, onde permaneceu até 1963, realizando estudos
com o sociólogo e historiador Pierre Francastel.
Obteve os graus de doutor em História pela Universidade de Paris em
1962, com "Une Ville des Lumères: la Lisbonne de Pombal", e fez o
doutoramento em Letras pela mesma universidade em 1969, com "Le
Romantisme au Portugal".
Na capital francesa, a que se manteve sempre ligado, conviveu com
intelectuais portugueses ali exilados, como António José Saraiva e
Joaquim Barradas de Carvalho, e conheceu figuras destacadas da cultura
francesa, como o filósofo e crítico literário Roland Barthes, o poeta
André Breton, o militante Daniel Cohn-Bendit, nome destacado do
movimento estudantil do Maio de 68, e o galerista Daniel-Henry
Kahnweiler, que lhe contava histórias sobre o artista plástico Picasso.
Para a capital francesa, comissariou mostras como
"Soleil et ombres: l'art portugais du XIX siècle", que levou ao Petit
Palais, depois de ter concebido "Os anos 40 na arte portuguesa", para a
Fundação Calouste Gulbenkian.
O seu interesse pela pintura manifestara-se em 1946, na sequência de
viagens a Espanha e Paris, seguidas de viagens à Europa e às Américas
até se fixar em Paris, em 1959.
Nas décadas de 1940 e 1950 foi uma das figuras mais dinâmicas e influentes da vida cultural portuguesa.
Entre 1947 e 1949, participou nas atividades do Grupo Surrealista de
Lisboa, tendo um papel polémico de oposição ao neorrealismo e aos seus
protagonistas.
Na década de 1950, assumiria a defesa do abstracionismo, tendo
organizado o primeiro salão português, dedicado a esta expressão, na
Galeria de Março - surgida na sequência da mostra surrealista na antiga
Casa Jalco, ao Chiado -, que dirigiu entre 1952 e 1954 (em parte com
Fernando Lemos).
Publicou os seus primeiros artigos de crítica de arte no Horizonte,
Jornal das Artes, tendo a partir daí uma extensa colaboração em jornais e
revistas da especialidade de onde podem destacar-se Unicórnio
(1951-1956), Art d'Aujourd'hui, Colóquio Artes, da Fundação Calouste
Gulbenkian, que dirigiu entre 1970 e 1996, e a KWY, lançada em Paris
pelo coletivo português Lourdes Castro, René Bertholo, Costa Pinheiro,
João Vieira, José Escada e Gonçalo Duarte, a que se associaram os
artistas Christo e Jan Voss (1958-1964).
Começou a fazer crítica de cinema em 1940, no jornal "O Diabo",
quando foi dirigido pelo historiador Fernando Piteira Santos, que tinha
sido seu colega na Faculdade de Letras.
José-Augusto França é autor de uma das obras chave sobre Chaplin, o
seu cinema e as suas personagens: "Charles Chaplin - O self made myth".
Dirigiu o Centro Cultural Português em Paris (1980-1986).
O seu nome também consta na lista de colaboradores da Revista Municipal (1939-1973), publicada pela Câmara Municipal de Lisboa.
A cidade foi aliás alvo de várias das suas obras: "Lisboa, História
física e moral" e "28 Crónica de um Percurso" são alguns dos exemplos.
Lecionou na Sociedade Nacional de Belas Artes. Foi professor
catedrático da Universidade Nova de Lisboa, desde 1974, onde criou os
primeiros mestrados de História de Arte do país.
A opção pela academia de Lisboa aconteceu após a Revolução de 25 de
Abril, deixando para trás a certeza de integração no Centro Nacional de
Investigação Científica de França (CNRS, na sigla original).
Antigo presidente da Academia Nacional de Belas Artes, membro do
Comité Internacional d'Histoire de l'Art e presidente de honra da
Association Internationale des Critiques d'Art.
Recebeu a Medalha de Honra da Cidade de Lisboa (1992), as insígnias
de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique (1991), a Grã-Cruz da
Ordem da Instrução Pública (1992), a Grã-Cruz da Ordem do Infante D.
Henrique (2006) e a Medalha de Mérito Cultural (2012), do Governo
português.
Desde 2018, a Imprensa Nacional (IN) tem em curso a publicação
"Biblioteca José-Augusto França", que iniciou com o romance "Natureza
Morta" e "Charles Chaplin, o Self-Made-Myth", e que também tem
disponível títulos como "Amadeo de Sousa-Cardoso -- O Português à
Força".
Nesta casa editorial encontram-se ainda publicados títulos como
"Correspondência Jorge de Sena - José-Augusto França" e "O «Ano XX»
Lisboa 1946 - Estudos de Factos Socioculturais".
Para breve, tem a IN prevista a publicação de "Estudos das Zonas ou
Unidades Urbanas de Carácter Histórico-Artístico em Lisboa",
levantamento efetuado por José-Augusto França sobre o património da
cidade, em 1967, que inclui proposta de "Salvaguarda do Património
Artístico Arquitectónico e Histórico dos Bairros Tradicionais da Cidade
de Lisboa", plantas de diferentes escalas, desenhos, um levantamento
fotográfico de 292 imagens, realizado no início de 1968, e o texto do
historiador.
Nas últimas entrevistas que José-Augusto França concedeu, afirmava,
sobre o seu quotidiano, que continuava a ler muito e a ver vários filmes
diariamente.