Uma visita ao Guincho Velho
É
durante a mudança dos sapatos que levamos calçados por outros mais
velhos, guardados no porta-bagagem, que se ouve, não muito longe, na
direcção da Azóia, o som do cuco saído do meio das brumas matinais que
escorregam das cumeadas dos montes para os vales apertados dos
contrafortes da Serra de Sintra.
Estamos
na segunda semana de Primavera e todo o chão que a vista alcança
encontra-se florido, salpicando o granito róseo de uma mescla de cores
duma espontaneidade madura de sexualidade. Pequenos pássaros, vestidos
de tons verdes e castanhos esvoaçam no meio das hastes dos tojos
queimados no último Verão por um incêndio que devorou toda a vegetação
entre a antiga casa de campo do conde de Caria e a Peninha.
Principiámos
a descer por um antigo caminho de macadame. É a antiga via que ligava
as instalações da campanha de pescadores do Guincho Velho à estrada
Cascais-Colares. O piso, muito mal tratado pelos anos de intempéries,
encontra-se sulcado por milhares de pequenos leitos das chuvas dos
Invernos passados, após o abandono da armação de pesca da Roca.
Atalhamos a corta mato os meandros da estrada aproveitando uma abertura
na vegetação serrada, causada por um riacho já seco.
Saem-nos
aos pés um casal de perdizes que rapidamente, num voo baixo, transpõem o
pequeno monte que separa o vale contíguo aquele que seguimos. Mais
tarde, à frente dos nossos passos, um coelho de pêlo cinzento dá
pequenos saltos, sem pressa, afastando-se do nosso caminho e
escondendo-se no meio de uma moita.
O
mar encontra-se cada vez mais próximo, voltamos ao antigo caminho, aqui
talhado, em parte, na rocha. Desfrutamos então o azul do mar em
contraste com as penedias róseas que se afundam nas suas águas. Já se
vêm as ruínas das casas do antigo Porto Touro, hoje Guincho Velho. O
nome actual provém ao que parece da existência no local de um guincho
movido a motor para ajudar a subir as barcas das armações para a praia.
Numa
curva da estrada, virada a sul, uma tela branca de plástico encontra-se
espiada contra um nicho da encosta, permitindo um abrigo esporádico ao
viajante apanhado por um aguaceiro primaveril.
No
porto que já foi abrigo a fenícios, local de partida para
correligionários de D. António, prior do Crato, e sede da campanha da
Roca, existem unicamente três barracas de madeira para abrigar cinco
pescadores sazonais. Intitulam-se companhas, pescam somente na Primavera
e no Verão quando o mar permite, durante o Outono e Inverno vão para as
suas terras, Nafarros e Lourinhã, dedicando-se então ao amanho das
terras e à construção civil. Utilizam na pesca os aparelhos de anzol,
para peixe e os covos para apanhar marisco e polvos.
A
poucos metros do oceano uma muralha de alvenaria teima enfrentar o mar
há dezenas de anos. Era a muralha de protecção do antigo porto, quando o
mar se encontrava bravo. A praia é constituída por calhaus rolados de
médias e grandes dimensões que dificultam o andar e provocam um som cavo
e estaladiço, quando as ondas os fazem chocar entre si.
Em
frente observa-se o mar, aqui de tons verdes, de onde emergem rochedos
acutilantes, sendo o mais célebre o abrolho do Guincho.
Está
na hora de regressar, a viagem é demorada, o caminho íngreme dificulta a
progressão agora em ascensão. Paramos obrigatoriamente por cima da baía
do porto. Dali avista-se uma imensidão de oceano, recortado pelas
falésias da costa até ao Cabo Raso. Podemos considerar esta uma das
soberbas vistas naturais que temos no território cascalense onde o homem
não mexeu, não estragou e fazemos votos para que não o faça, como tem
feito, noutros pontos do concelho.*
Texto. (Guilherme Cardoso) *