Somos animais perigosos quando andamos na estrada — e parece que
não é de agora… Entre reis e gente comum, há quem não se conforme.
O Sinaleiro de Atouguia
Numa vila a poucos quilómetros de Peniche chamada Atouguia da Baleia —
a terra da minha mãe, onde passei largas temporadas da minha infância
—, havia um senhor que ficava o dia inteiro a evitar acidentes num
cruzamento especialmente perigoso entre uma rua de Atouguia e a Estrada
Nacional 114. Chamava-se António Sousa Vala — e a rua tem hoje o seu
nome.
Sempre o conheci como «o Sinaleiro». Ali aparecia, todos os dias,
anos e anos, por sua iniciativa, usando gestos só dele, que os
condutores da terra já conheciam.
Porquê? Porque, anos antes, naquele preciso cruzamento, vira morrer
um homem esmagado por um carro. Um mês depois, conheceu por acaso um
rapazinho que tinha ficado sem pai nesse acidente… O Sinaleiro prometeu:
ali não morreria mais ninguém. E assim foi — até ao fim da sua vida.
Lembrei-me dele esta semana, quando recebi — sem pedir — três pontos
novinhos em folha na carta de condução. Portei-me bem, pelos vistos.
Esta espécie de jogo de pontos é mais uma tentativa de controlar a
fúria portuguesa na estrada. É uma velha tradição do país. (Não que
sejamos especiais nessa fúria automobilística, diga-se…)
O sistema de pontos foi importado de outras paragens. Mas há séculos
que andamos a inventar maneiras de controlar os arremessos de fúria dos
brandos portugueses — e nem todas implicam arregaçar as mangas e ir para
a estrada ajudar os automobilistas a sobreviver.
Duelos na estrada
Imaginemos a cena, muito comum. Dois carros encontram-se, em
direcções contrárias, numa rua apertada. Nenhum quer recuar. Passamos
pelo franzir da testa, pelos gestos cada vez mais irritados, pelas
buzinadelas, pelos insultos, as desconsiderações aos familiares
femininos do oponente, pelas partilhas da matrícula contrária no
Facebook…
Parece que cenas destas são tradição nacional. A Lisboa do século
XVII era já um festival de fúrias no trânsito. O grande perigo não eram
os acidentes, mas antes a raiva de quem se via, dentro dum coche, parado
numa rua estreita, frente a outro coche, sem que nenhum quisesse
recuar.
Conta o
Memorial de Pêro Roiz Soares que, num dia de Outono
de 1679, se encontraram numa rua apertada duas carruagens, uma com o
Marquês de Niza e o Conde-Barão de Alvito e a outra com o Marquês de
Fontes. Se um português plebeu é como é, imagine-se quando lhe sobem os
títulos à cabeça…
Nesse dia, os condes e marqueses ficaram três horas a puxar dos
brasões, sem que ninguém recuasse. Parece que teve de ser o próprio rei a
vir resolver a questão, mandando todos recuar ao mesmo tempo. A questão
chegou a Roma, diz a crónica.
(Encontrei este relato no documento
«A circulação na Lisboa seiscentista», da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária.)
Com o trânsito a complicar, havia cada vez mais confrontos. Poucos
anos de
ois, o rei D. Pedro II mandou espalhar uns quantos sinais de
trânsito pela cidade, a indicar as prioridades, para evitar duelos e
demais inconvenientes do orgulho nacional. Surgiu também uma espécie de
código da estrada, com multas simpáticas: degredo por cinco anos no
Brasil.
Mesmo com a ameaça de viagem forçada para Terras de Vera Cruz, dizem
as más-línguas que poucos ligaram aos sinais — estamos em Portugal,
afinal.
O mais antigo sinal de trânsito
O certo é que, entre esses primeiros sinais e o nosso tempo, passaram
mais de trezentos anos, com um terramoto e a invenção do automóvel pelo
meio. Mas um deles resistiu. Ali está, mesmo por cima duma caixa da
EDP, na Rua do Salvador, em Alfama.
Tentemos ler, mesmo com a ortografia e as abreviaturas seiscentistas, temperadas pela falta de espaços
:
«Ano
de 1686. Sua Majestade ordena que os coches, seges e liteiras que
vierem da portaria do Salvador recuem para a mesma parte.»
O sinal é curioso. Longe dos símbolos bem desenhados e com bom
contraste, temos uma ordem directa, em nome do rei, escrita na pedra.
Acho deliciosa aquela última linha, encolhida — imagino o homem de
cinzel na mão e língua entre os dentes, a murmurar um palavrão, tentando
resolver o problema. Não podia começar de novo, que as pedras não são
baratas…
O certo é a pessoa que inscreveu aquelas palavras na pedra estaria
longe de imaginar que, depois de terramotos e uns quantos séculos, o
sinal ali continuaria, numa rua apertada da nossa Lisboa do século XXI.
Aquele sinal era uma tentativa de resolver faltas de paciência,
orgulhos sem pudor, a mania da superioridade de quem se vê na estrada…
Se, à época, contássemos a alguém que, séculos depois, o mesmo bicho que
ficava três horas a teimar dentro de coches seria enfiado em máquinas
com capacidade de andar mais depressa que um cavalo a galope, veríamos
certamente olhos arregalados de horror.
E é verdade: os carros conduzidos por portugueses e demais humanos
são perigosos. Afinal, morreram na estrada milhares e milhares de
pessoas, só no nosso país, ao longo do século XX.
Há umas poucas décadas que o número de mortos tende a diminuir,
devagar, com recuos, mas continuamos a ter de lidar com este problema
que nós próprios criamos todos os dias, com as nossas fúrias, as nossas
distracções, o nosso gosto por ir cada vez mais depressa, por colar a
frente do nosso carro à traseira do empata que vai à frente, por
ultrapassar mesmo quando não temos a certeza que não vem ninguém para lá
da curva…
A velha natureza humana dentro de uma máquina mortal.
Entre um rei que inventa os sinais de trânsito ao jogo dos pontos da
carta de condução, lá nos vamos tentando salvar de nós mesmos. Às vezes,
há quem vá mesmo para o meio da estrada para poupar a vida dos outros —
pois aqui fica uma pequena homenagem a uma das memórias da minha
infância: o Sinaleiro de Atouguia.