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30.4.20

O DOURO




Autor. Manuel Monteiro

 Edição. 1998

 Fac-simile da edição de 1911, Emílio Biel & Cª Editores. Apresentação por Gaspar Martins Pereira
Agosto, Edições Livro Branco Lda, 1998- In. 4º de VII-215-I págs. Enc. do editor
Profusamente ilustrado.


Vindima no Douro por Manuel Monteiro

Arqueólogo, etnólogo e escritor de altos méritos, Manuel Monteiro conhece Portugal, e os usos, costumes e paisagens da nossa terra, como raros os conhecem. Do seu livro O Douro [1], estudo perfeito dos aspectos e dos recursos dessa região nortenha, extraímos o trecho sobre a vindima, em que descreve e evoca um dos momentos mais característicos da rude azáfama dos trabalhadores do campo.

João de Barros [1881-1960]


Enquanto por armazéns e lagares se ultima a faina de concertos, esfrega e lavagens no vasilhame, as vinhas animam-se de uma alegria vibrante e ruidosa.
Hora fugaz de desanuviamento para essa pobre gente, que, não obstante a amargura contínua da existência, ainda, pelo menos uma vez no ano, sabe rir e cantar!


As ranchadas de mulheres com as notas coloridas dos seus vestuários, agitando-se por entre as cepas à luz clara do sol do equinócio, o transporte dos cestos abarrotados de uvas, as canções em coro que gargalhadas e gritos entrecortam, a palrice entre os dois sexos, no geral, brejeira e de uma fervente volúpia que a atmosfera cálida espicaça e os olhares húmidos denunciam, evocam reminiscências das antigas festas naturalistas parecendo que se repercute ainda o eco báquico dos Evohé!..

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A vindima propriamente dita, isto é, a separação dos cachos da vide pertence ao mulherio e ainda aos rapazes munidos de uma navalha ou tesoura cortam as uvas e as lançam, depois de escolhidas, nuns pequenos cabazes os quais se despejam em gigos ou altos cestos em vime em tronco de pirâmide quadrangular invertida, que uma vez cheios e indicados por varas enramalhadas, no alto, com parras, à semelhança dos tirsos [2] clássicos, são conduzidos por homens – os carregadores – para os lagares onde são por sua vez esvaziados


. Os feitores vigiam atentamente a escolha para que não haja inadvertência deixando seguir junto, com o fruto bom e perfeito, o afectado, apodrecido ou verde. Cheios os lagares, procede-se à pisa. Esta lida fatigantíssima é feita a pés, como em Roma, na Grécia e no venerável Egipto.
 Os pisadores – calcatores – depois de lavados entram no calcatorium, isto é, no lagar, ou tanque quadrangular ou rectangular de cantaria, onde estão as uvas colhidas.
A primeira pisa – o corte – é a mais exaustiva e realiza-se desde as oito às doze horas nocturnas.
De começo a tarefa corre em silêncio, mas à medida que o esmagamento se completa, espalham-se os eflúvios do mosto rúbido que tinge as pernas dos lagareiros, e estes encetam os descantes acompanhados de uns instrumentos quase ex-históricos e um contentamento, rude e tonitroante, se avoluma e reina no ambiente alumiado pela claridade crua e fixa do acetilena, ou pela luz difusa do petróleo, que põe efeitos surpreendentes nas faces, lambusadas, escandecidas e dignas do pincel de Velasquez.


Depois deste trabalho denominado a meia-noite os lagaceiros saem para prosseguirem na pândega e voltam na manhã seguinte para sova, que dura até ao meio-dia e se repete uma ou mais vezes conforme a condição da colheita e a qualidade do vinho a obter


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