(...) " O livro mobiliário é o que, embora possa ser lido, não se destina propriamente à leitura. Compra-se, coloca-se numa estante para compor um canto da salinha em que se recebem os amigos As revistas de móveis e decorações consideram essa presença absolutamente indispensável no arranjo do lar.
E, em certas profissões ou a partir de certa situação social, o simples canto com livros não se considera suficiente; é necessário uma parede completa, ou até um gabinete de madeiras escuras todo forrado de lombadas. São coisas que fazem parte daquilo a que os sociólogos chamam um status symbol.
É, aliás, uma prática já antiga, à qual se referia a conhecida expressão " comprar livros a metro ".
Mas essa conduta, que autrora se tinha por inconfessável ou pelo menos ninguém se atrevia a confessar, é agora objecto de uma exploração editorial sistemática.
As edições de " obras completas em numerosos volumes luxuosamente encadernados ( porque também as coisas aqui se inverteram; antigamente o livro encadernava-se porque valia, hoje vale porque se encadernou ), as enciclopédias de lombadas douradas, muitas vezes escritas em língua que o comprador não domina, as assinaturas do clube do livro, que envia todos os meses para casa do leitor o livro que se encarrega de escolher por ele -
tudo isso são modalidades modernas e insinuantes do tal antigo " comprar livros a metro ".
Mas talvez o caso mais extremo, e por isso mesmo mais expressivo, assumido pelo fenómeno do livro mobiliário, se possa encontrar no facto de alguns fabricantes de móveis de luxo decorarem pequenos armários destinados a servir de bar, ou a esconder a televisão, o rádio ou simplesmente o quadro da electricidade, com lombadas de livros antigos, por vezes velhos volumes do século XVIII.
A lombada é cortada cerce e grudada à madeira.
É um vandalismo que revolta, mas que é útil por nos revelar a tendência levada às suas últimas consequências; se a função do livro mobiliário é apenas a de ser visto, não se deve desperdiçar espaço com a parte do livro que não servia senão para ler. " (...) *
* Outras Maneiras de Ver
Temas portugueses.
Pro. Dr. José Hermano Saraiva
Ano de 1979
E, em certas profissões ou a partir de certa situação social, o simples canto com livros não se considera suficiente; é necessário uma parede completa, ou até um gabinete de madeiras escuras todo forrado de lombadas. São coisas que fazem parte daquilo a que os sociólogos chamam um status symbol.
É, aliás, uma prática já antiga, à qual se referia a conhecida expressão " comprar livros a metro ".
Mas essa conduta, que autrora se tinha por inconfessável ou pelo menos ninguém se atrevia a confessar, é agora objecto de uma exploração editorial sistemática.
As edições de " obras completas em numerosos volumes luxuosamente encadernados ( porque também as coisas aqui se inverteram; antigamente o livro encadernava-se porque valia, hoje vale porque se encadernou ), as enciclopédias de lombadas douradas, muitas vezes escritas em língua que o comprador não domina, as assinaturas do clube do livro, que envia todos os meses para casa do leitor o livro que se encarrega de escolher por ele -
tudo isso são modalidades modernas e insinuantes do tal antigo " comprar livros a metro ".
Mas talvez o caso mais extremo, e por isso mesmo mais expressivo, assumido pelo fenómeno do livro mobiliário, se possa encontrar no facto de alguns fabricantes de móveis de luxo decorarem pequenos armários destinados a servir de bar, ou a esconder a televisão, o rádio ou simplesmente o quadro da electricidade, com lombadas de livros antigos, por vezes velhos volumes do século XVIII.
A lombada é cortada cerce e grudada à madeira.
É um vandalismo que revolta, mas que é útil por nos revelar a tendência levada às suas últimas consequências; se a função do livro mobiliário é apenas a de ser visto, não se deve desperdiçar espaço com a parte do livro que não servia senão para ler. " (...) *
* Outras Maneiras de Ver
Temas portugueses.
Pro. Dr. José Hermano Saraiva
Ano de 1979