" As casas e as coisas dentro dela começam muito bem, a funcionar lindamente. Quando se quer ligar um apetrecho, liga-se e ele põe-se logo a trabalhar.
Depois passam uns anos. E, de repente, sem avisar, tudo se complica. Onde antes estava um botão, agora é preciso desligar da tomada, esperar 15 segundos e, mal se carrega no botão, sacudir vigorosamente e, mal começa a piscar, ligar e desligar cinco vezes seguidas o mais depressa possível. Assim - mas só assim - funciona com perfeição. Que é como quem diz: tal e qual como dantes, quando era novo.
Entra-se então num período em que cada maquineta, cada porta, cada fechadura tem um particular segredo. É o período de graças: achamos imensa graça aos chamados " caprichos " da nossa casa. É a prova, convencemo-nos com optimismo alarve, que a casa tem personalidade.
Este período de graças acaba com surpreendente rapidez. Passa-se então à fase permanente da irritação. O " jeitinho " para ligar o forno começa a requerer um grau de perícia artesanal e de paciência zen que nem sempre está disponível dentro das nossas almas. O " truque " para acender um candeeiro é igual ao que garante fundir a lâmpada de outro. E, com cada dia que passa, é cada vez mais difícil distingui-los.
Fica-se finalmente com uma saudade furiosa das coisas quando eram novas e simples e fáceis de pôr a funcionar. É deprimente uma casa cheia de coisas que já não são novas e que ainda não se podem deitar fora. Ainda ... " 1
1. Texto da autoria de Miguel Esteves Cardoso.
In Jornal Público
Foto extraída da internet
Depois passam uns anos. E, de repente, sem avisar, tudo se complica. Onde antes estava um botão, agora é preciso desligar da tomada, esperar 15 segundos e, mal se carrega no botão, sacudir vigorosamente e, mal começa a piscar, ligar e desligar cinco vezes seguidas o mais depressa possível. Assim - mas só assim - funciona com perfeição. Que é como quem diz: tal e qual como dantes, quando era novo.
Entra-se então num período em que cada maquineta, cada porta, cada fechadura tem um particular segredo. É o período de graças: achamos imensa graça aos chamados " caprichos " da nossa casa. É a prova, convencemo-nos com optimismo alarve, que a casa tem personalidade.
Este período de graças acaba com surpreendente rapidez. Passa-se então à fase permanente da irritação. O " jeitinho " para ligar o forno começa a requerer um grau de perícia artesanal e de paciência zen que nem sempre está disponível dentro das nossas almas. O " truque " para acender um candeeiro é igual ao que garante fundir a lâmpada de outro. E, com cada dia que passa, é cada vez mais difícil distingui-los.
Fica-se finalmente com uma saudade furiosa das coisas quando eram novas e simples e fáceis de pôr a funcionar. É deprimente uma casa cheia de coisas que já não são novas e que ainda não se podem deitar fora. Ainda ... " 1
1. Texto da autoria de Miguel Esteves Cardoso.
In Jornal Público
Foto extraída da internet