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17.6.19

PORTUGAL RODOVIÁRIO

Como salvar portugueses na estrada?

Somos animais perigosos quando andamos na estrada — e parece que não é de agora… Entre reis e gente comum, há quem não se conforme.

O Sinaleiro de Atouguia

Numa vila a poucos quilómetros de Peniche chamada Atouguia da Baleia — a terra da minha mãe, onde passei largas temporadas da minha infância —, havia um senhor que ficava o dia inteiro a evitar acidentes num cruzamento especialmente perigoso entre uma rua de Atouguia e a Estrada Nacional 114. Chamava-se António Sousa Vala — e a rua tem hoje o seu nome.
Sempre o conheci como «o Sinaleiro». Ali aparecia, todos os dias, anos e anos, por sua iniciativa, usando gestos só dele, que os condutores da terra já conheciam.

Porquê? Porque, anos antes, naquele preciso cruzamento, vira morrer um homem esmagado por um carro. Um mês depois, conheceu por acaso um rapazinho que tinha ficado sem pai nesse acidente… O Sinaleiro prometeu: ali não morreria mais ninguém. E assim foi — até ao fim da sua vida.
Lembrei-me dele esta semana, quando recebi — sem pedir — três pontos novinhos em folha na carta de condução. Portei-me bem, pelos vistos.

Esta espécie de jogo de pontos é mais uma tentativa de controlar a fúria portuguesa na estrada. É uma velha tradição do país. (Não que sejamos especiais nessa fúria automobilística, diga-se…)
O sistema de pontos foi importado de outras paragens. Mas há séculos que andamos a inventar maneiras de controlar os arremessos de fúria dos brandos portugueses — e nem todas implicam arregaçar as mangas e ir para a estrada ajudar os automobilistas a sobreviver.

Duelos na estrada

Imaginemos a cena, muito comum. Dois carros encontram-se, em direcções contrárias, numa rua apertada. Nenhum quer recuar. Passamos pelo franzir da testa, pelos gestos cada vez mais irritados, pelas buzinadelas, pelos insultos, as desconsiderações aos familiares femininos do oponente, pelas partilhas da matrícula contrária no Facebook…

Parece que cenas destas são tradição nacional. A Lisboa do século XVII era já um festival de fúrias no trânsito. O grande perigo não eram os acidentes, mas antes a raiva de quem se via, dentro dum coche, parado numa rua estreita, frente a outro coche, sem que nenhum quisesse recuar.

Conta o Memorial de Pêro Roiz Soares que, num dia de Outono de 1679, se encontraram numa rua apertada duas carruagens, uma com o Marquês de Niza e o Conde-Barão de Alvito e a outra com o Marquês de Fontes. Se um português plebeu é como é, imagine-se quando lhe sobem os títulos à cabeça…

Nesse dia, os condes e marqueses ficaram três horas a puxar dos brasões, sem que ninguém recuasse. Parece que teve de ser o próprio rei a vir resolver a questão, mandando todos recuar ao mesmo tempo. A questão chegou a Roma, diz a crónica.

 (Encontrei este relato no documento «A circulação na Lisboa seiscentista», da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária.)

Com o trânsito a complicar, havia cada vez mais confrontos. Poucos anos de
ois, o rei D. Pedro II mandou espalhar uns quantos sinais de trânsito pela cidade, a indicar as prioridades, para evitar duelos e demais inconvenientes do orgulho nacional. Surgiu também uma espécie de código da estrada, com multas simpáticas: degredo por cinco anos no Brasil.

Mesmo com a ameaça de viagem forçada para Terras de Vera Cruz, dizem as más-línguas que poucos ligaram aos sinais — estamos em Portugal, afinal.

O mais antigo sinal de trânsito

O certo é que, entre esses primeiros sinais e o nosso tempo, passaram mais de trezentos anos, com um terramoto e a invenção do automóvel pelo meio. Mas um deles resistiu. Ali está, mesmo por cima duma caixa da EDP, na Rua do Salvador, em Alfama.



Tentemos ler, mesmo com a ortografia e as abreviaturas seiscentistas, temperadas pela falta de espaços
: «Ano de 1686. Sua Majestade ordena que os coches, seges e liteiras que vierem da portaria do Salvador recuem para a mesma parte.»

O sinal é curioso. Longe dos símbolos bem desenhados e com bom contraste, temos uma ordem directa, em nome do rei, escrita na pedra.

Acho deliciosa aquela última linha, encolhida — imagino o homem de cinzel na mão e língua entre os dentes, a murmurar um palavrão, tentando resolver o problema. Não podia começar de novo, que as pedras não são baratas…
O certo é a pessoa que inscreveu aquelas palavras na pedra estaria longe de imaginar que, depois de terramotos e uns quantos séculos, o sinal ali continuaria, numa rua apertada da nossa Lisboa do século XXI.

Aquele sinal era uma tentativa de resolver faltas de paciência, orgulhos sem pudor, a mania da superioridade de quem se vê na estrada… Se, à época, contássemos a alguém que, séculos depois, o mesmo bicho que ficava três horas a teimar dentro de coches seria enfiado em máquinas com capacidade de andar mais depressa que um cavalo a galope, veríamos certamente olhos arregalados de horror.

E é verdade: os carros conduzidos por portugueses e demais humanos são perigosos. Afinal, morreram na estrada milhares e milhares de pessoas, só no nosso país, ao longo do século XX.

Há umas poucas décadas que o número de mortos tende a diminuir, devagar, com recuos, mas continuamos a ter de lidar com este problema que nós próprios criamos todos os dias, com as nossas fúrias, as nossas distracções, o nosso gosto por ir cada vez mais depressa, por colar a frente do nosso carro à traseira do empata que vai à frente, por ultrapassar mesmo quando não temos a certeza que não vem ninguém para lá da curva…

A velha natureza humana dentro de uma máquina mortal.
Entre um rei que inventa os sinais de trânsito ao jogo dos pontos da carta de condução, lá nos vamos tentando salvar de nós mesmos. Às vezes, há quem vá mesmo para o meio da estrada para poupar a vida dos outros — pois aqui fica uma pequena homenagem a uma das memórias da minha infância: o Sinaleiro de Atouguia.