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«Tinha 21 anos quando
fiz de modelo para o Henrique Moreira, o mestre que fez a estátua:
Mais tarde colocaram-me na Avenida dos Aliados - que belos anos
aqueles! Estive duas semanas a “posar” e ainda hoje recordo com
alegria e saudade aqueles momentos de trabalho, pois posso morrer
amanhã que todos ficarão a saber quem era a Lela...
Além disso, nessa
altura, dava-me bem com os artistas, era bonita e eles convidavam-me.
Andava por toda a parte, ganhei uns “cobres” com o Henrique Moreira,
mas hoje... Resta-me a consolação de estar ali, de costas voltadas
para o Almeida Garrett e de frente para o D. Pedro IV.»
Perguntei-lhe nessa altura se não tinha havido problemas com a nudez da estátua - por exemplo, proibições, censuras.
Ela respondeu-me:
- «Bem, sabe que naquela
época havia certos sectores que se opunham claramente e até ficaram
escandalizados com a “Menina Nua”.
Nós éramos muito tacanhos e veja
bem que há 50 anos as ideias eram realmente diferentes. Havia o
Salazar, a Pide e o povo era mais fechado, mais religioso. Felizmente o
mestre Henrique Moreira conseguiu “levar a água ao seu moinho” e lá
fiquei, de pedra e nua, assim como Deus me botou ao Mundo...»
Sorriu de imediato,
mostrando ainda réstias de um rosto bonito e de uma boca fina, onde já
rareavam os dentes, vítima do peso dos anos e das canseiras e
desgraças da vida. Além disso, imagine uma “moçoila”, no tempo da
“outra senhora”, a expor-se toda nua perante uns homens de tela e
pincéis ou bocados de pedra. Bem... era quase como ser comunista ou
mulher da vida.
Fez-se uma pausa para
mandarmos umas “bocas” contra o sistema do antigamente. Prossegui,
perguntando-lhe quando e onde tinha começado a ser modelo. Antes de me
responder, fica um pouco pensativa, levanta-se e encaminha-se para o
seu quarto, vasculha dentro do guarda-vestidos e traz-me um amontoado
de papéis e fotografias.
- «Vá, veja lá tudo
isto» - diz-me. (Anotei visualmente uma série de fotografias, pequenas
referências, recordações e memórias da “Menina Nua”). «De qualquer
modo, e se a memória não me falha, comecei com o mestre Teixeira
Lopes, na figura-modelo da rainha D. Amélia. Esta estátua encontra-se
actualmente no museu com o mesmo nome, em Vila Nova de Gaia.
Nessa
época tinha muita vergonha. Era uma “moçoila” com 18 anos, bem feita e
bonita.
A minha mãe tinha falecido e fiquei mais tarde com uma
madrasta, de quem por acaso não gostava nada; por isso mudei-me para o
Bonfim, para casa da minha santa avó.
Que tempos... Nessa altura,
iniciei-me como modelo nas Belas Artes do Porto e lentamente fui-me
habituando, até que fiquei mais descarada...»
Levantou a cabeça e, numa reflexão interior, com risos de vaidade e inconformismo, continuou:
- «Ah, nesse tempo,
punha a cabeça dos rapazes em fogo, era bonita e não havia ninguém que
não me conhecesse como a “Menina Nua”.
Depois passei alguns anos como
modelo, andei pelo Norte, pelo Sul e até a Lourenço Marques (hoje
Maputo) eu fui. Fiz de modelo para vários mestres, entre eles: Acácio
Lino, Joaquim Lopes, Dórdio Gomes, Sousa Caldas, Augusto Gomes,
Camarinha e os consagrados Henrique Moreira e Teixeira Lopes. Além da
“Menina Nua”, estou no Buçaco, no Cinema Rivoli, em Lisboa e em
Moçambique... E hoje?
Como vê, aqui estou, desde os 43 anos cega, uma
vida difícil de adaptação, um mundo escuro, negro.
E mais negro se
tornou aquando da morte do meu marido.
Fiquei completamente só. Hoje,
passados alguns anos, tenho um casal a viver comigo, sempre me ajudam a
pagar a renda e a fazer-me um pouco de companhia.
Tenho umas ajudas
do Centro de Dia da Terceira Idade, ligado ao Centro Social cá do
bairro, onde vou almoçar e lanchar. Enfim, sempre ajuda a passar o
tempo e a velhice. Mas o que eu mais desejava na vida, além de mais
dinheiro para viver, era dos meus ricos olhos...» (Algumas lágrimas
correram-lhe pelas faces, enquanto se preparava para ir almoçar ao
Centro.)
Despedi-me dela,
tentando consolá-la com frases de carinho e amizade, mas a vida é um
cão que não conhece o dono… Ela despediu-se (nessa altura), com um bom
dia, entrecortado com um sorriso morgaiato, misto de Ribeira, Bonfim e
Pasteleira...
Aurélia Magalhães
Monteiro, a Lela, a Lelinha ou a “Ceguinha do 9”, faleceu no dia 2 de
Junho de 1992, com 82 anos de idade. No entanto, a “Menina Nua”
continua viva, fixa e eterna, ali na Avenida dos Aliados, envolta nos
nevoeiros citadinos, perpétua e ardente, nos dramas e vitórias deste
povo.
Do livro "Pasteleira City", de Raul Simões Pinto – Edições Pé de Cabra – Fevereiro de 1994
(com ligeiras adaptações)
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