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1.1.15

CARTA AO MEU INIMIGO



Meu querido Inimigo:

   Hoje, primeiro de Janeiro, data que o calendário consagra à fraternidade universal, julgo-me no dever de lhe escrever esta carta.

   Não para fazer votos por que o ano lhe corra feliz, próspero e sem aborrecimentos de vulto. Pelo contrário; desejo-lhe um ano o pior possível, contratempos de todo o género  -  e imagino que assim retribuo aquilo que Você realmente pensa a meu respeito.

   Exposta a situação na sua evidente clareza e não quedando no Seu espírito a ideia de que lhe envio um bilhete de cumprimentos, posso à vontade recordar as atenções indirectas que teve para comigo no ano que findou agora. Na verdade, meu caro Inimigo, os seus ataques e até mesmo as suas calúnias foram-me  muitíssimo úteis. É minha obrigação agradecer-lhe o obséquio de se lembrar de mim tantas vezes.


Semelhante favor não o devo aos meus amigos, categoria que compreende variadíssimas pessoas e variadíssimas atitudes.

   Há os amigos de infância, com quem privámos na escola, de quem a vida nos separou e que voltamos a encontrar, trinta, quarenta ou cinquenta  anos depois, muitas vezes por simples acaso.
 São amigos sinceros, leais, dedicados  -  mas que ignoram tudo da nossa actual personalidade. Tratam-nos por tu, meio gramatical de fazer crer ( a nós e a eles próprios ) que existem entre ambos profunda intimidade.

 No entanto  -  triste é dizê-lo -  além do tu nenhuma outra afinidade nos liga. Não é um afecto; é um hábito. Hábito que nos acompanhará até ao fim dos nossos dias, como tantos outros.

   Estes são os amigos que podemos chamar de primeiro plano. Porque existem amigos de primeiro, de segundo e de terceiro plano. Não falo dos amigos do sexo feminino, que estão acima disso tudo; pertencem à classe " sleeping "
.
   Os amigos de segundo plano apareceram numa fase mais adiantada da nossa carreira. Igualmente sinceros, leais e dedicados, têm, não obstante, o grave inconveniente de nos conhecerem demasiado.

 Em consequência daquela miopia particular que dão os sentimentos, sabem mais dos nossos defeitos que das nossas qualidades. As qualidades planam mais alto: sem óculos, eles não podem vê-las. Quanto aos nossos defeitos, saltam à vista. Por isso essa espécie de amigos tem possibilidade de contar por toda a parte ( e sem má intenção ) certos pequenos  pormenores que revelam as nossas cobardias, as nossas dívidas, as nossas incoerências e as nossas fraquezas sentimentais.

 Pelo que respeita às boas acções que praticamos  - eles, rigorosamente, não se aperceberam, até porque as boas acções devem ser discretas.
 O meu amigo Tiago.   Autor J.P.L.

   Os amigos de terceiro plano correspondem àquelas pedras em que me sento, cansado, quando por vezes passeio na minha bicicleta  por essas serras.

Não oferecem nenhuma comodidade. Em geral nem invocam a qualidade de amigos: são camaradas, colegas, condiscípulos.

Frequentemente gostaria-mos de saber o que nos aproxima.

Camaradas ? !
 De quê ? !

 Da profissão ?
 Do café ?
Do artritismo ?
 Das  estreias do cinema ?
  Do serviço militar ?
 Da política ?
 Da associação regionalista ?
  Tais dúvidas não impedem que eles nos tratem com a sem cerimónia autorizada pela indiscutível amizade que nos une.

   Aqui está, meu caríssimo inimigo, a razão por que me lembrei de si no dia do Ano Bom. Se não fosse a sua hostilidade  ( e a doutros como você ),  eu teria há muito adormecido na almofada duma falsa confiança em mim próprio.

 A si, naturalmente, acontece-lhe o mesmo. Para além da nossa recíproca animosidade, um  elemento bem forte faz com que nos tratemos com a maior consideração: compreende-mo-nos.
   Quando Você diz mal de mim, ninguém o acredita.

Você é suspeito e com certeza a realidade é o contrário do que Você afirma. Mas, se for um amigo meu que o diga, estou sem defesa; se um amigo o divulga, quem tem o direito de duvidar ? !

   Insistindo em denegrir-me  ( eu tenho feito o possível por lhe pagar da mesma moeda ), Você presta-me um grande serviço. Faz lembrar o tempo das antigas fotografias a preto e branco. É um trabalho incompleto. Mais que incompleto:  contraproducente.

 Quem vir a " foto "  põe preto onde está branco e branco onde está preto, reconstituindo mentalmente o retrato a cores. E deste modo Você contribue grandemente para a publicidade da minha pessoa, publicidade que aliás nunca lhe pedi nem lhe agradeço e que por isso mesmo tem maior valor; é espontânea, não é feita por encomenda nem sob pressão do interesse material ou de cegueira afectiva.

   Se alguma coisa lhe posso pedir, peço-lhe que continue.

Desperta o meu instinto de luta, força-me a consultar o meu foro intimo, impõe-me uma revisão das ideias e da conduta. Muito obrigado.

   Entretanto aceite os meus sinceros votos de um péssimo ano, cortado de desilusões e prejuízos financeiros.


   Creia sempre na indefectível inimizade de quem sóbriamente, se subscreve.

                   Mtº Attº e Venº

                    J.P.L.