Meu querido Inimigo:
Hoje, primeiro de Janeiro, data que o calendário consagra à fraternidade universal, julgo-me no dever de lhe escrever esta carta.
Não para fazer votos por que o ano lhe corra feliz, próspero e sem aborrecimentos de vulto. Pelo contrário; desejo-lhe um ano o pior possível, contratempos de todo o género - e imagino que assim retribuo aquilo que Você realmente pensa a meu respeito.
Exposta a situação na sua evidente clareza e não quedando no Seu espírito a ideia de que lhe envio um bilhete de cumprimentos, posso à vontade recordar as atenções indirectas que teve para comigo no ano que findou agora. Na verdade, meu caro Inimigo, os seus ataques e até mesmo as suas calúnias foram-me muitíssimo úteis. É minha obrigação agradecer-lhe o obséquio de se lembrar de mim tantas vezes.
Há os amigos de infância, com quem privámos na escola, de quem a vida nos separou e que voltamos a encontrar, trinta, quarenta ou cinquenta anos depois, muitas vezes por simples acaso.
São amigos sinceros, leais, dedicados - mas que ignoram tudo da nossa actual personalidade. Tratam-nos por tu, meio gramatical de fazer crer ( a nós e a eles próprios ) que existem entre ambos profunda intimidade.
No entanto - triste é dizê-lo - além do tu nenhuma outra afinidade nos liga. Não é um afecto; é um hábito. Hábito que nos acompanhará até ao fim dos nossos dias, como tantos outros.
Estes são os amigos que podemos chamar de primeiro plano. Porque existem amigos de primeiro, de segundo e de terceiro plano. Não falo dos amigos do sexo feminino, que estão acima disso tudo; pertencem à classe " sleeping "
.
Os amigos de segundo plano apareceram numa fase mais adiantada da nossa carreira. Igualmente sinceros, leais e dedicados, têm, não obstante, o grave inconveniente de nos conhecerem demasiado.
Em consequência daquela miopia particular que dão os sentimentos, sabem mais dos nossos defeitos que das nossas qualidades. As qualidades planam mais alto: sem óculos, eles não podem vê-las. Quanto aos nossos defeitos, saltam à vista. Por isso essa espécie de amigos tem possibilidade de contar por toda a parte ( e sem má intenção ) certos pequenos pormenores que revelam as nossas cobardias, as nossas dívidas, as nossas incoerências e as nossas fraquezas sentimentais.
Pelo que respeita às boas acções que praticamos - eles, rigorosamente, não se aperceberam, até porque as boas acções devem ser discretas.
O meu amigo Tiago. Autor J.P.L. |
Os amigos de terceiro plano correspondem àquelas pedras em que me sento, cansado, quando por vezes passeio na minha bicicleta por essas serras.
Não oferecem nenhuma comodidade. Em geral nem invocam a qualidade de amigos: são camaradas, colegas, condiscípulos.
Frequentemente gostaria-mos de saber o que nos aproxima.
Camaradas ? !
De quê ? !
Da profissão ?
Do café ?
Do artritismo ?
Das estreias do cinema ?
Do serviço militar ?
Da política ?
Da associação regionalista ?
Tais dúvidas não impedem que eles nos tratem com a sem cerimónia autorizada pela indiscutível amizade que nos une.
Aqui está, meu caríssimo inimigo, a razão por que me lembrei de si no dia do Ano Bom. Se não fosse a sua hostilidade ( e a doutros como você ), eu teria há muito adormecido na almofada duma falsa confiança em mim próprio.
A si, naturalmente, acontece-lhe o mesmo. Para além da nossa recíproca animosidade, um elemento bem forte faz com que nos tratemos com a maior consideração: compreende-mo-nos.
Quando Você diz mal de mim, ninguém o acredita.
Você é suspeito e com certeza a realidade é o contrário do que Você afirma. Mas, se for um amigo meu que o diga, estou sem defesa; se um amigo o divulga, quem tem o direito de duvidar ? !
Insistindo em denegrir-me ( eu tenho feito o possível por lhe pagar da mesma moeda ), Você presta-me um grande serviço. Faz lembrar o tempo das antigas fotografias a preto e branco. É um trabalho incompleto. Mais que incompleto: contraproducente.
Quem vir a " foto " põe preto onde está branco e branco onde está preto, reconstituindo mentalmente o retrato a cores. E deste modo Você contribue grandemente para a publicidade da minha pessoa, publicidade que aliás nunca lhe pedi nem lhe agradeço e que por isso mesmo tem maior valor; é espontânea, não é feita por encomenda nem sob pressão do interesse material ou de cegueira afectiva.
Se alguma coisa lhe posso pedir, peço-lhe que continue.
Desperta o meu instinto de luta, força-me a consultar o meu foro intimo, impõe-me uma revisão das ideias e da conduta. Muito obrigado.
Entretanto aceite os meus sinceros votos de um péssimo ano, cortado de desilusões e prejuízos financeiros.
Creia sempre na indefectível inimizade de quem sóbriamente, se subscreve.
Mtº Attº e Venº
J.P.L.