João Adrião
DOS HOMENS E DOS BICHOS:
A CONQUISTA DA MONTANHA
Mil anos de história contados pelo prisma do povoamento humano e animal das montanhas do centro do país.
Há
lendas muito antigas de homens e bicharada no Centro de Portugal.
Lendas dos tempos das Cruzadas, da Reconquista Cristã, do nascimento de
Portugal, de quando estás montanhas foram fronteira... Lendas com o rei
D. Diniz (Vide, Seia - Corço e Javali), com D. Sesnando, moçárabe
governador do Condado Conimbricense (fundação do Mosteiro de S. Jorge,
Coimbra. Veados), ou mesmo com D. Fernando Magno, primeiro rei de
Castela - sobre o Mosteiro de Lorvão e seus famosos Veados.
Mas
muito mais que lendas, abunda documentação a atestar que, pelos
primeiros séculos do passado milénio, abundariam Veados, Corços, Gamos,
Javalis e até Ursos, que encontramos mencionados em inúmeros forais,
como sejam os de Seia, Covilhã, Guarda, Alpedrinha ou Côja, nas
montanhas mais interiores, mas igualmente a oeste, em Santa Comba,
Almaça ou Coimbra. De Montemor ficou o topónimo "Corço".
A
fronteira avançou da linha da cordilheira central até ao mar Algarvio,
com reis conquistadores e povoadores e à medida que o país se
consolidava, estes animais foram rareando da faixa litoral e da metade
sul do país, passando mesmo a gozar de proteção régia (que chegou por D.
Afonso V aos Javalis da Serra da Estrela, cifrando-se o castigo em mil
reis).
Todavia,
nas montanhas a pressão humana cresceu devagar, e a bicharada
continuava a abundar, razão que obrigava por exemplo os vizinhos da
Lousã a que se revezavam para da Páscoa ao São João, correr o monte que
acoitava Veados e Feras. Ou que motivou as exceções de D. João I a
Pedrógão, Figueiró ou Sertã, que eram livres de caçar Veados e Javalis
que estragavam pão e vinho.
Por
essa altura estávamos já na epopeia de dar novos mundos ao mundo, e
também esses novos mundos nos deram novidades, onde se incluíram novas
técnicas e produtos agrícolas. O Milho, chegado no ínicio do séc XVI,
constituiu uma autêntica revolução no NW, onde no final desse mesmo
século, já era a cultura dominante. Cerca de metade dos povoados das
Serras do Açor e Lousã, nascem por este e pelos séculos seguintes,
levando os socalcos montanha acima.
Tempo
de lendas fundacionais, como em Sobral Valado (Pampilhosa da Serra),
com um monstro que seria provavelmente um Veado, ou no Piódão, tendo um
Urso como protagonista, com a veracidade a ser atestada na região pela
existência de Silhas e de variada Toponímia. Também a há relacionada com
Cervídeos, e mesmo que "Unhais", "Vidual" ou "Cerveira" sejam incertos,
"Vale da Corça" (Arganil) ou "Vale das Cervas" (Pampilhosa da Serra),
não deixam dúvidas, tal como no Fundão o Monte e Ermida de N. Sra.
Cervas...
Abundam
destes tempos as corografias, os dicionários geográficos e, no rescaldo
do Terramoto, as Memórias Paroquiais. Delas sabemos que Veados, Corços e
Javalis ainda ocupavam no século XVIII as Serras da Estrela, do Açor,
da Lousã e da Guardunha. Para esta última, o Padre Luís Cardoso ainda
cita o Urso.
Terão
sido os últimos, ficando apenas como memória as Lutas de Feras (como no
Jubileu de Avô de 1635, com Lobos, Javalis e um Urso) e as grandes
caçadas (como a de 1740 do Senhor de Linhares, irmão de D João V, que
além dos muitos Lobos que matou, abateu 80 Veados, outros tantos Corços,
e 51 Javalis)...
O
séc. XIX foi palco de muita agitação e transformação: foram as invasões
francesas e a guerra civil, assim como a perda do Brasil, as
revoluções liberal e camponesa e o fim do antigo regime senhorial...
Assentada a poeira, a população praticamente duplica. E entrados no séc.
XX, com a sopa dos pobres na cidade ou 2 guerras mundiais, foi ali, nas
madrastas terras montanas que as pessoas tiveram de arrancar o pão para
a boca.
Entre
o meio de um século e o meio do outro, dá-se o maior pico de pressão
humana e o espaço para animais selvagens, mesmo nas ásperas e recônditas
serranias, fica reduzido a pequenas ilhas. Nas Serras do Açor e Lousã,
há aldeias (expl. Tarrastal, Góis) a nascer e a morrer neste período.
Os
Cervídeos, tal como o Urso, já não existiam, ficando o Javali confinado
a improdutivos barrancos, sobretudo junto às intratáveis encostas das
margens do Zêzere (Pampilhosa da Serra, Oleiros). Isto verificou-se por
todo o país: Cervídeos e Javalis desapareceram da Serra Algarvia, do
Pinhal de Leiria, das Serras de Sintra e Arrábida, das Serras
Beiradurienses... O Urso só esporadicamente nos visitou daí para cá. Só
os muros das Tapadas salvaram Veados e Gamos. E até às Cabras com
ferozes Cabrões do Gerês se sumiram...
O
pós-guerra marca o fim deste mundo rural. Os jovens partiram, para a
cidade ou para o estrangeiro, os mais velhos ficaram, mas foram
morrendo. Escolas, Palheiros, Moinhos, etc, viraram ruínas. Os rebanhos
desapareceram. Os socalcos encheram-se de Silvas e Giestas. Enormes
extensões onde o homem deixou de pisar desenvolveram matagais
impenetráveis, que só o fogo de quando em quando vai efemeramente
limpando. Note-se que estes movimentos de urbanização e litoralização
são, não obstante os ritmos, fenómenos globais...
As
montanhas do Centro, após testemunharem o regresso em força do Javali
ainda nos finais do século XX, viram também nos últimos 20 anos, e com
influência do sector cinegético, desenvolverem-se boas populações de
Veados e Corços. Mas não foi só aqui... Os Javalis regressaram a Sintra,
à Arrábida, ao Pinhal de Leiria ou às Serras do Porto. Os Cervídeos
voltaram à Serra Algarvia, à Beira Alta, ao Tejo ou ao Guadiana. A Cabra
voltou ao Gerês e até o Urso nos visitou recentemente. Com espaço
disponível como não havia há séculos, a bicharada voltou para ocupar os
seus antigos domínios.
NOTAS:
1)
Ao Veado, Gamo e Corço, Javali e Urso, juntam-se na história dos Montes
Hermínios animais que preferi excluir. Um deles é o Zebro, dado que
embora abunde toponímia e documentação, não há consenso sobre que animal
seria. De igual modo os trabalhos do naturalista espanhol A. Cabrera
levantam a possibilidade de aqui terem existido Cabras-bravas em tempos
históricos. Todavia, não lhes encontrei quaisquer referências concretas e
a falta delas, tendo em consideração a antiguidade da pastorícia e
mesmo da transumância (mais de 6 milénios), leva-me a pensar que o seu
desaparecimento pode ser muito anterior.
2)
Este texto visou a Veação de grande porte das nossas montanhas,
concretamente e em traços largos, a dinâmica das suas populações através
da história. Traços que permitiram extravasar as montanhas para grandes
marcos da nossa história coletiva, nacionais e mesmo mundiais. E não
deixa de ser relevante que para o fazer, é dispensável a actividade
venatoria em si (e falar de espingardas, de prémios, de armadilhas e
venenos, etc.), tantas vezes apontada como causa única do impacto humano
nefasto sobre esta bicharada. Pelo contrário, muito o sector tem
ajudado os bichos no seu regresso...