Já
poucos são os que entram em museus, teatros ou livrarias.
Não conseguem competir com o cinema, a Netflix e os festivais de música. O Mundo do Livro é um desses locais ignorados, apesar de ser lá que se pode conhecer um “resistente”.
O dono, João Rodrigues Pires, tem 100 anos e continua a dirigir a sua própria livraria, o que lhe confere o palmarés de livreiro mais antigo de Portugal.
Não conseguem competir com o cinema, a Netflix e os festivais de música. O Mundo do Livro é um desses locais ignorados, apesar de ser lá que se pode conhecer um “resistente”.
O dono, João Rodrigues Pires, tem 100 anos e continua a dirigir a sua própria livraria, o que lhe confere o palmarés de livreiro mais antigo de Portugal.
O Mundo Do Livro já foi só do livro, mas atualmente é de muitas outras
coisas. Gravuras antigas, mapas, reproduções, molduras, pinturas e
postais preenchem este ex-líbris lisboeta, onde o que se mantém imutável
é o fundador: há quase 80 anos que João Pires passa os seus dias à
frente desta loja que já viu Lisboa mudar e que recentemente conseguiu
duas distinções:
A sua livraria foi considerada “Loja com História” e foi condecorado pelo Presidente da República, com o grau de Comendador da Ordem do Mérito.
A sua livraria foi considerada “Loja com História” e foi condecorado pelo Presidente da República, com o grau de Comendador da Ordem do Mérito.
Porque as noticias não escolhem hora e o seu tempo é precioso.Com 100 anos recentemente celebrados, o Sr. Pires continua a ir e vir
todos os dias de táxi até à sua loja no centro da capital, onde sobe e
desce pelos três andares do edifício pombalino sem quase se notar o peso
da idade.
É natural de Santo Amaro de Oeiras, viveu 10 anos da sua infância em Cacheu, na Guiné, mas passou toda a vida no Chiado, primeiro em várias livrarias reconhecidas, como a Bertrand e a Sá da Costa, e depois assentando arraiais por conta própria.
A livraria O Mundo do Livro abriu portas em 1941, na Rua Nova da Trindade, no vão de escadas do edifício onde ainda hoje se encontra a Academia dos Amadores de Música, e em 1946 mudou-se para a morada que mantém, no Largo da Trindade.
Começou aos vinte e poucos anos com 200 livros e 300 escudos, num Chiado intelectual, onde circulavam clientes com poder de compra num mundo pré-Internet.
Hoje passam-se dias sem que venda um único livro - as gravuras chegaram para apoiar o negócio em declínio dos livros antigos -, mas o Sr. Pires diz estar orgulhoso:
“Fiz coisas que nenhum livreiro fez, edições de livros e cerca de 400 gravuras que nunca tinham sido reproduzidas.” O bibliófilo está sempre pronto a ajudar a encontrar um livro ou uma gravura e também a trocar dois dedos de conversa e partilhar uma ou outra história.
Naturalmente, ao longo da vida que passou à frente da livraria que fundou após a Guerra Civil de Espanha, os episódios caricatos foram-se acumulando.
Desde um interrogatório na Polícia Judiciária - ainda no tempo de Salazar - que durou 12 horas, até às amizades com Aquilino Ribeiro e a família Almeida Garrett, contamos aqui algumas das memórias que preenchem a vida do alfarrabista mais antigo de Portugal.
É natural de Santo Amaro de Oeiras, viveu 10 anos da sua infância em Cacheu, na Guiné, mas passou toda a vida no Chiado, primeiro em várias livrarias reconhecidas, como a Bertrand e a Sá da Costa, e depois assentando arraiais por conta própria.
A livraria O Mundo do Livro abriu portas em 1941, na Rua Nova da Trindade, no vão de escadas do edifício onde ainda hoje se encontra a Academia dos Amadores de Música, e em 1946 mudou-se para a morada que mantém, no Largo da Trindade.
Começou aos vinte e poucos anos com 200 livros e 300 escudos, num Chiado intelectual, onde circulavam clientes com poder de compra num mundo pré-Internet.
Hoje passam-se dias sem que venda um único livro - as gravuras chegaram para apoiar o negócio em declínio dos livros antigos -, mas o Sr. Pires diz estar orgulhoso:
“Fiz coisas que nenhum livreiro fez, edições de livros e cerca de 400 gravuras que nunca tinham sido reproduzidas.” O bibliófilo está sempre pronto a ajudar a encontrar um livro ou uma gravura e também a trocar dois dedos de conversa e partilhar uma ou outra história.
Naturalmente, ao longo da vida que passou à frente da livraria que fundou após a Guerra Civil de Espanha, os episódios caricatos foram-se acumulando.
Desde um interrogatório na Polícia Judiciária - ainda no tempo de Salazar - que durou 12 horas, até às amizades com Aquilino Ribeiro e a família Almeida Garrett, contamos aqui algumas das memórias que preenchem a vida do alfarrabista mais antigo de Portugal.
A entrada
Quando se entra n’O Mundo Do Livro podemos sentir alguma confusão - apesar do nome da loja, esta é maioritariamente ocupada por gravuras.
As pistas que justificam o nome surgem depois da impressão inicial: no piso térreo, a vitrina da caixa registadora guarda relíquias dedicadas ao dono da loja, a montra exterior dá destaque rotativo a obras literárias raras e no canto esquerdo deste piso há um pequeno mostruário quase em jeito de museu, expondo as edições fac-similadas de obras raras como “As Sátiras” de Sá Miranda ou a primeira edição das “Comédias Portuguesas” de Simão Machado que o livreiro produziu.
A escritora Carolina Michaelis de Vasconcelos considerava que “As Sátiras” estavam perdidas, lembra o alfarrabista. “Um dia, um exemplar entra-me aqui pela porta a dentro”. Na altura não conhecia a obra, mas seguiu o instinto e comprou-a por quinze contos.
A jogada de sorte acabou por compensar pois o livreiro veio a ganhar muito mais, produzindo cerca de 400 exemplares desta obra considerada desaparecida. “Depois ofereci cinquenta ao Instituto Alto da Cultura para distribuir pelas bibliotecas do país.” Quanto ao livro do poeta Simão Machado, o único exemplar conhecido estava na Biblioteca do Vaticano, até aparecer um segundo n’O Mundo do Livro.
O Sr. Pires estava a fazer uma edição para um professor francês, com base no exemplar do Vaticano que estava em muito mau estado, quando um livreiro inglês seu conhecido, durante uma passagem por Lisboa, lhe mencionou que teria um volume em Oxford. Regressou a Inglaterra e, volvidos dois dias, telefona a João Pires com boas notícias: era precisamente o exemplar que queriam e estava em melhores condições do que o do Vaticano.
“Eu nunca encontrei referência a este livro!”, lembra o livreiro, que na altura pediu então para lhe ser enviada a peça, sem perguntar pelo preço: “Chega cá o livro e são 70 contos… Agora a quem é que vou vender isto?”, lembra o Sr. Pires. Em conversa com um colega de profissão, relata o acontecido e qual o seu plano: “Veja lá, comprei isto em Inglaterra por 70 contos e já tinha feito a edição. Vou vender à Biblioteca Nacional por 90 contos.” Antes disso, decidiu sondar o colega: “‘Queres-mo comprar? Poupas-me o trabalho de lá ir...’ Vendi-lhe a ele por 90 contos e ele foi lá vendê-lo por 150”, conta.
Na tacanha entrada d’O Mundo do Livro, para além
das gravuras e das acarinhadas edições que o alfarrabista reproduziu, os
olhos do cliente acabado de entrar inevitavelmente poisam em dois
diplomas pendurados na parede, reconhecimentos que celebram uma vida
preenchida.
Um diploma relativamente recente confere ao Mundo Do Livro o “Prémio Europa de la empresa ejemplar”. Acima deste, a moldura mais chamativa protege um diploma outorgado pela Presidência da República italiana. Assinado pelo presidente Giuseppe Saragat, em 1965, confere a João Rodrigues Pires o Grau de Cavaleiro da Ordem de Mérito.
Tamanha condecoração deveu-se a um evento único em Portugal, uma celebração dos 700 anos do nascimento do escritor italiano Dante Alighieri organizado pelo nosso livreiro. “Quando foi o centenário de Dante disse para o Pina Martins, que era professor da faculdade, ‘e se nós fizermos aqui uma comemoração do centenário de Dante?’”.
Continua João Pires: “Convidámos professores e uma quantidade de gente, enchi aqui a casa e fizemos essa comemoração. Fiz uma edição do Dante, com introdução de Pina Martins e até foi ele próprio que arranjou o original, que é raríssimo.”
Um diploma relativamente recente confere ao Mundo Do Livro o “Prémio Europa de la empresa ejemplar”. Acima deste, a moldura mais chamativa protege um diploma outorgado pela Presidência da República italiana. Assinado pelo presidente Giuseppe Saragat, em 1965, confere a João Rodrigues Pires o Grau de Cavaleiro da Ordem de Mérito.
Tamanha condecoração deveu-se a um evento único em Portugal, uma celebração dos 700 anos do nascimento do escritor italiano Dante Alighieri organizado pelo nosso livreiro. “Quando foi o centenário de Dante disse para o Pina Martins, que era professor da faculdade, ‘e se nós fizermos aqui uma comemoração do centenário de Dante?’”.
Continua João Pires: “Convidámos professores e uma quantidade de gente, enchi aqui a casa e fizemos essa comemoração. Fiz uma edição do Dante, com introdução de Pina Martins e até foi ele próprio que arranjou o original, que é raríssimo.”
Desde que João Pires iniciou o seu negócio por conta própria, no pequeno vão-de-escada na Rua Nova da Trindade, que a loja se chama O Mundo do Livro, mas nem sempre o exterior da livraria correspondeu à sua alma, tal como observou em tempos um cliente assíduo da família Almeida Garrett, José Maria de Almeida Garrett: “Eu não o conhecia. Sabia apenas que era comprador de livros e comecei-lhe a mandar os catálogos”, explica o livreiro. “Um dia aparece-me lá um velhote com um cão com pêlo de arame a dizer, 'esta está boa, aqui num buraco o mundo do livro’”, ao que o Sr. Pires riposta, "mas diga-me com quem tenho o prazer de estar a falar”. “Está a falar com o seu amigo e cliente José Maria de Almeida Garrett!”, veio de volta a resposta.
O andar do meio
Se
hoje João Rodrigues Pires é oficialmente o mais antigo livreiro de
Portugal, em 1951 era o mais novo, ou pelo menos assim o apelidava o
amigo e escritor Aquilino Ribeiro.
. Conheceram-se em Santo Amaro de Oeiras, onde o autor vivia com a primeira mulher, alemã, e o filho Aníbal, que mais tarde se tornou juiz e foi um dos amigos de infância do Sr. Pires (“jogávamos ao berlinde os dois”), conta-nos este enquanto sobe as escadas da sua livraria.
. Conheceram-se em Santo Amaro de Oeiras, onde o autor vivia com a primeira mulher, alemã, e o filho Aníbal, que mais tarde se tornou juiz e foi um dos amigos de infância do Sr. Pires (“jogávamos ao berlinde os dois”), conta-nos este enquanto sobe as escadas da sua livraria.
Pertencem a este autor duas das maiores preciosidades d’O Mundo do
Livro e as histórias que o incluem são contadas por João Pires com
carinho: “O Aquilino era um amigo, era um amigo…”, suspira enquanto
folheia o manuscrito inédito do livro infantil “O livro do menino Deus”
rescrito propositadamente para a livraria em 1956, para uma nova edição
do conto chamado “Sonho de Uma Noite de Natal” e que conta com mais
páginas e algumas emendas.
Lê-se na carta que acompanha o livro rabiscado: “Meu caro Pires, aí lhe remeto o conto refundido e ampliado. Agora só desejo que faça uma plaqueta bonita como fez para o Gil e para o Garrett, mas leia primeiro. PS: Desculpe ter-lhe inutilizado o livro ‘Menino de Deus’, no entanto aí lho mando vandalizado.”
Lê-se na carta que acompanha o livro rabiscado: “Meu caro Pires, aí lhe remeto o conto refundido e ampliado. Agora só desejo que faça uma plaqueta bonita como fez para o Gil e para o Garrett, mas leia primeiro. PS: Desculpe ter-lhe inutilizado o livro ‘Menino de Deus’, no entanto aí lho mando vandalizado.”
Uns anos antes, em 1951, foi o amigo Aquilino Ribeiro quem escreveu o prefácio do primeiro Catálogo de Livros Selecionados do ainda jovem Mundo do Livro, essencial numa altura em que não existia Internet para difundir a oferta das livrarias: “João Pires, porventura o livreiro antiquário mais novo de Portugal e por certo dos mais audazes e entendidos, apresenta à venda um escrínio precioso de bons autores, célebres autores, em edições raras, edições de tiragem limitada, nos melhores papéis, Watman, Japão, linho da Abelheira, exemplares únicos por vezes, encadernados sumptuosa e principescamente.
” O autor continua: “Debrucem-se um momento, folheando-o, para o catálogo que ora lhes oferece ‘O Mundo do Livro’, tão discreto como arrojado nas suas empresas de antiquária”. E, depois de elogiar o trabalho de encadernação do livreiro (“magnificamente encadernadas e o seu estado é impecável.
Nem um traço, a menor nódoa, a pinta duma mosca.”), enumera a variedade de autores em oferta na livraria, como Carolina Michaelis de Vasconcelos, Garrett, Camões, Teófilo Braga, Beckford ou Bradford. Quase em jeito de presságio, Aquilino Ribeiro termina da seguinte forma: “Nada mais que do ementário desta admirável coleção se pode inferir com segurança que o livro é artigo de primeiro interesse, que o livro corre pelas estradas mesteirais do mundo em maior quantidade do que nunca e com acentuada procura.
Se houvesse crise neste ramo de atividade, é porque tinha batido uma hora sombria para a civilização.” E foi precisamente a este declínio que João Pires assistiu.
“Tenho saudades desses tempos…. As pessoas já não compram, o cérebro deixa de funcionar. Já fecharam pelo menos vinte e tal livrarias em Lisboa e as tipografias também têm fechado; a Cromotipo, que trabalhava para mim, por falta de trabalho também fechou há dois anos.
” Das janelas do segundo andar veem-se turistas a tirar fotografias à baixa lisboeta e a passearem-se com sacos de compras, mas poucos são os que entram nesta livraria que já faz parte da história da capital.
O último andar
As histórias contadas pelo Sr. Pires vão-se acumulando pelos andares da
sua loja, mas é quando se chega ao terceiro piso que o mundo do livro
realmente se revela.
Ao cimo das escadas os nossos olhos inevitavelmente recaem sobre o enorme mural pintado por António Domingues em 1962. O Sr. Pires lembra que a maquete inicial da obra não tinha livros retratados - foram posteriormente acrescentados para evitar que a PIDE censurasse a pintura e ilustram o poema de Castro Alves: “Oh! Bendito o que semeia/ Livros... livros à mão cheia…/ E manda o povo pensar!/ O livro cahindo n’alma/ É germen - que faz a palma. /É chuva - que faz o mar.”
Ao cimo das escadas os nossos olhos inevitavelmente recaem sobre o enorme mural pintado por António Domingues em 1962. O Sr. Pires lembra que a maquete inicial da obra não tinha livros retratados - foram posteriormente acrescentados para evitar que a PIDE censurasse a pintura e ilustram o poema de Castro Alves: “Oh! Bendito o que semeia/ Livros... livros à mão cheia…/ E manda o povo pensar!/ O livro cahindo n’alma/ É germen - que faz a palma. /É chuva - que faz o mar.”
Este terceiro andar iluminado pelo sol lisboeta tem uma aparelhagem
sempre sintonizada numa das estações de rádio da moda. Hip-hop americano
ou funk brasileiro ecoam numa divisão forrada a gravuras e livros de
outro século, um século em que a música que passava na rádio era
certamente outra, e é neste piso solarengo doutro tempo que João Pires
tem também a sua coleção privada, onde se pode ler num autocolante
colado nas estantes cheias de memórias, “not for sale” [não está para
venda].
Dossiers repletos de recortes de jornais de época dão conta de vendas avultadas de livros raros, várias fotografias ilustram quase 80 anos de profissão e correspondência com grandes livreiros e comerciantes relatam a pujança de que outrora os alfarrabistas usufruíam. H. P. Kraus, que o Sr. Pires descreve como “um dos maiores livreiros de Nova Iorque”, despede-se numa carta de 1952 de maneira pouco modesta (“The name of my firm is so well known that I do not think it is necessary to give you references”, isto é, “O nome da minha empresa é tão conhecido que penso não ser necessário apresentar-lhe referências”), mas não sem antes elogiar O Mundo do Livro:
“I would like to congratulate you at this occasion on your large catalogue. It is the first nice catalogue I have received from Portugal, and I do hope, we can establish agreeable business relations.” [“Gostaria de o felicitar pelo seu vasto catálogo. É o primeiro bom catálogo que recebi de Portugal e espero que consigamos estabelecer agradáveis relações de negócios.”]
Dossiers repletos de recortes de jornais de época dão conta de vendas avultadas de livros raros, várias fotografias ilustram quase 80 anos de profissão e correspondência com grandes livreiros e comerciantes relatam a pujança de que outrora os alfarrabistas usufruíam. H. P. Kraus, que o Sr. Pires descreve como “um dos maiores livreiros de Nova Iorque”, despede-se numa carta de 1952 de maneira pouco modesta (“The name of my firm is so well known that I do not think it is necessary to give you references”, isto é, “O nome da minha empresa é tão conhecido que penso não ser necessário apresentar-lhe referências”), mas não sem antes elogiar O Mundo do Livro:
“I would like to congratulate you at this occasion on your large catalogue. It is the first nice catalogue I have received from Portugal, and I do hope, we can establish agreeable business relations.” [“Gostaria de o felicitar pelo seu vasto catálogo. É o primeiro bom catálogo que recebi de Portugal e espero que consigamos estabelecer agradáveis relações de negócios.”]
As histórias do livreiro
situam-se quase todas no século passado, durante o tempo áureo do livro,
quando figuras influentes da cultura portuguesa se passeavam pela baixa
lisboeta: “Aqueles clientes fantásticos que havia, os Almeida Garretts,
os Condes da Trindade, isso já não há.
Eu mandava catálogos para todo o mundo e vinham professores de todo o mundo”. No Chiado de antigamente “havia poetas que andavam a passear, artistas de teatro, na Bertrand reunia-se muita gente, na Sá da Costa a mesma coisa e aqui também.”
As tertúlias e os encontros de professores eram ocorrências regulares e o Sr. Pires lembra-se de um episódio em particular: “Uns professores estrangeiros estavam aqui e às sete horas vinha eu dizer que a porta estava fechada e que tínhamos de ir embora, mas a conversa era tão interessante que eu acabei também por entrar.
Depois dessa conversa toda olhei para o relógio. ‘Epá, uma hora da noite? Tenho o relógio avariado’. Eles foram ver e era uma hora da noite, nem jantámos nem nada. Pus tudo na rua!”
Eu mandava catálogos para todo o mundo e vinham professores de todo o mundo”. No Chiado de antigamente “havia poetas que andavam a passear, artistas de teatro, na Bertrand reunia-se muita gente, na Sá da Costa a mesma coisa e aqui também.”
As tertúlias e os encontros de professores eram ocorrências regulares e o Sr. Pires lembra-se de um episódio em particular: “Uns professores estrangeiros estavam aqui e às sete horas vinha eu dizer que a porta estava fechada e que tínhamos de ir embora, mas a conversa era tão interessante que eu acabei também por entrar.
Depois dessa conversa toda olhei para o relógio. ‘Epá, uma hora da noite? Tenho o relógio avariado’. Eles foram ver e era uma hora da noite, nem jantámos nem nada. Pus tudo na rua!”
Os clientes desse tempo eram figuras como Charles Boxer, historiador e
professor inglês conhecido pelos seus estudos da história colonial e
marítima portuguesa ("O professor Boxer saía do avião e vinha para aqui.
Começava ali e tuca, tuca, tuca. Quando via um livro, metia em cima da mesa e depois dizia, ‘Ó Pires, manda uma lista para o King’s College para eles comprarem isto’”, lembra o livreiro); o Comandante Ernesto Vilhena, da Companhia de Diamantes de Angola (“O Comandante Vilhena era o meu melhor cliente. Vinha aqui todos os sábados, sentava-se e dormia ali uma soneca depois do almoço. Depois quando acordava dizia, "o que é que há aí para mim?”); e outros tantos, muitos deles anónimos para João Pires, mas que vinham de propósito à sua “casa” em busca do bom gosto do proprietário.
“Um dia aparece aqui um inglês já velhote, um panamá na cabeça, umas alpercatas de corda e a camisa passajada - usavam-se uns colarinhos de plástico que às vezes rompiam as camisas”, começa assim mais uma deliciosa história do livreiro.
O estrangeiro vinha à procura de iluminuras; sentou-se e foi escolhendo o que queria das pilhas de sugestões apresentadas pelo Sr. Pires. “Ele põe de parte e põe de parte e compra-me aquilo tudo, 900 e tal contos.” Em espanhol, o cliente pergunta se poderia passar um cheque sob a Suíça e se depois a compra pode ser entregue no Hotel Estoril Sol. “Eu pus-me assim a pensar: ‘Se o homem manda receber primeiro o cheque e depois manda entregar, é porque o cheque tem cobertura’”, explica o Sr. Pires. “Eu volto para dentro e digo, ‘o senhor comprou, pagou, agora pode levar’”. O inglês responde, surpreendido, que o livreiro não o conhecia, ao que este riposta: “Pois é, mas é um cliente, comprou, pagou, leve.” O Sr. Pires tanto insistiu que o cliente lá levou os seus livros.
Compra finalizada, interação terminada, João Pires corre até ao banco para verificar se o cheque tinha efetivamente cobertura. “Epá, vendeste a livraria toda?”, questionou na altura o administrador do banco.
“Olha, podes vender Lisboa inteira, porque é um dos homens mais ricos de Inglaterra, John Galvin”, veio mais tarde a explicação.
O inglês tornou-se então num cliente querido da casa e “depois ofereceu-me vários livros”, relata João Pires. “Era editor, tinha uma companhia de navios, companhia de aviação, tinha tipografias, tinha sei lá o quê - era considerado o homem mais rico de Inglaterra e parecia um pedinte!”
Começava ali e tuca, tuca, tuca. Quando via um livro, metia em cima da mesa e depois dizia, ‘Ó Pires, manda uma lista para o King’s College para eles comprarem isto’”, lembra o livreiro); o Comandante Ernesto Vilhena, da Companhia de Diamantes de Angola (“O Comandante Vilhena era o meu melhor cliente. Vinha aqui todos os sábados, sentava-se e dormia ali uma soneca depois do almoço. Depois quando acordava dizia, "o que é que há aí para mim?”); e outros tantos, muitos deles anónimos para João Pires, mas que vinham de propósito à sua “casa” em busca do bom gosto do proprietário.
“Um dia aparece aqui um inglês já velhote, um panamá na cabeça, umas alpercatas de corda e a camisa passajada - usavam-se uns colarinhos de plástico que às vezes rompiam as camisas”, começa assim mais uma deliciosa história do livreiro.
O estrangeiro vinha à procura de iluminuras; sentou-se e foi escolhendo o que queria das pilhas de sugestões apresentadas pelo Sr. Pires. “Ele põe de parte e põe de parte e compra-me aquilo tudo, 900 e tal contos.” Em espanhol, o cliente pergunta se poderia passar um cheque sob a Suíça e se depois a compra pode ser entregue no Hotel Estoril Sol. “Eu pus-me assim a pensar: ‘Se o homem manda receber primeiro o cheque e depois manda entregar, é porque o cheque tem cobertura’”, explica o Sr. Pires. “Eu volto para dentro e digo, ‘o senhor comprou, pagou, agora pode levar’”. O inglês responde, surpreendido, que o livreiro não o conhecia, ao que este riposta: “Pois é, mas é um cliente, comprou, pagou, leve.” O Sr. Pires tanto insistiu que o cliente lá levou os seus livros.
Compra finalizada, interação terminada, João Pires corre até ao banco para verificar se o cheque tinha efetivamente cobertura. “Epá, vendeste a livraria toda?”, questionou na altura o administrador do banco.
“Olha, podes vender Lisboa inteira, porque é um dos homens mais ricos de Inglaterra, John Galvin”, veio mais tarde a explicação.
O inglês tornou-se então num cliente querido da casa e “depois ofereceu-me vários livros”, relata João Pires. “Era editor, tinha uma companhia de navios, companhia de aviação, tinha tipografias, tinha sei lá o quê - era considerado o homem mais rico de Inglaterra e parecia um pedinte!”
Uma das histórias mais caricatas da longa vida do Sr. Pires, também ela retratada no cantinho das memórias preservadas em micas, acaba com um interrogatório na PJ, ainda antes do 25 de Abril, graças a um livro vendido por 400 contos a uma senhora que forneceu uma morada falsa. Tratava-se do "Tratado de Confissom”, o primeiro livro impresso em Portugal, encontrado em Chaves e datado de 1489.
Falamos do mais antigo incunábulo português. “Fui eu que o vendi ao
banqueiro Miguel Quina”, conta, divertido, João Pires. “Um livro
impresso em Chaves onde nunca se sonhou que houvesse uma tipografia!” Os
incunábulos, obras impressas até ao ano de 1500, eram apenas alguns dos
livros raros que passavam pelas mãos do Sr. Pires e que os clientes da
altura queriam e podiam comprar.
O banqueiro Miguel Quina, administrador do Banco Borges & Irmão, comprou o “Tratado” por 400 contos, mas, com receio da imagem que tal transação avultada pudesse transmitir, pediu sigilo: “Ó Pires, eu não quero que se saiba que dei 400 contos por um livro. Eu mando cá alguém buscar o livro".
O banqueiro Miguel Quina, administrador do Banco Borges & Irmão, comprou o “Tratado” por 400 contos, mas, com receio da imagem que tal transação avultada pudesse transmitir, pediu sigilo: “Ó Pires, eu não quero que se saiba que dei 400 contos por um livro. Eu mando cá alguém buscar o livro".
No dia da transação apareceu uma empregada do Banco Borges & Irmão,
que “agarrou em 400 notas de contos e levou o livro”. João Pires
passou-lhe um recibo, com o nome e morada que ela lhe facultou.
“Resultado: apareceram algumas notícias nos jornais e às duas por três vem cá o diretor da Biblioteca Nacional, o Estevens, mais a Carlota, a bibliotecária”, conta o Sr. Pires. “Queriam ver um livro que eu tinha comprado, um incunábulo.” A resposta da parte do livreiro não se fez demorar: “Eu fui apenas intermediário.
A senhora viu as coisas nos jornais, telefonou-me, veio cá, comprou, pagou e foi embora.” João Pires deu-lhes o nome da senhora, eles foram lá e, como vieram a descobrir, “nem a senhora nem a morada existiam.”
“Resultado: apareceram algumas notícias nos jornais e às duas por três vem cá o diretor da Biblioteca Nacional, o Estevens, mais a Carlota, a bibliotecária”, conta o Sr. Pires. “Queriam ver um livro que eu tinha comprado, um incunábulo.” A resposta da parte do livreiro não se fez demorar: “Eu fui apenas intermediário.
A senhora viu as coisas nos jornais, telefonou-me, veio cá, comprou, pagou e foi embora.” João Pires deu-lhes o nome da senhora, eles foram lá e, como vieram a descobrir, “nem a senhora nem a morada existiam.”
Mais tarde nesse dia, quando o alfarrabista chegou a casa, tinha um
carro da Polícia Judiciária à porta. “Disseram-me que a senhora não
existia e eu respondi que não acreditava em almas do outro mundo”.
Estava iniciada a investigação - “Fui para a Polícia Judiciária no carro
deles, fui entrevistado por uma quantidade de coisas e depois
mandaram-me embora
.” Dois dias depois, o cenário repetiu-se: “Eu fui interrogado nessa altura por todas as brigadas, uns simpáticos, outros muito malcriados, e eu era sempre o mesmo discurso”, conta o Sr. Pires. “Esteve lá o diretor da Judiciária, que quando me interrogou abanou-me e eu disse-lhe 'não me abane assim, porque quem compra um livro por 400 contos é capaz de o demitir a si e a mim meter-me na cadeia…veja lá o que você faz'”.
.” Dois dias depois, o cenário repetiu-se: “Eu fui interrogado nessa altura por todas as brigadas, uns simpáticos, outros muito malcriados, e eu era sempre o mesmo discurso”, conta o Sr. Pires. “Esteve lá o diretor da Judiciária, que quando me interrogou abanou-me e eu disse-lhe 'não me abane assim, porque quem compra um livro por 400 contos é capaz de o demitir a si e a mim meter-me na cadeia…veja lá o que você faz'”.
João
Pires lembra-se que começou a ser interrogado às 3 da tarde e apenas foi
libertado às 3 da madrugada, “sem jantar nem nada”. Enquanto isto, uma
irmã do livreiro foi a casa do Miguel Quina e disse para este ir à
Polícia Judiciária.
O banqueiro levantou-se às 3 da manhã e lá foi explicar que tinha sido ele a comprar o livro, através de uma das suas empregadas. “Depois já me tratavam por Vossa Excelência na PJ… então há bocado eu era inimigo público número 1 e agora já sou excelência?”, remata João Pires. "Aquilo foi um caso sério.
Os jornais diziam: ‘senhora misteriosa adquiriu por 400 contos o primeiro livro impresso em Portugal. A compradora nem regateou e deu nome e morada falsa’”. E depois de tanta comoção, onde foi então parar o mais antigo livro impresso em Portugal? “Uns anos mais tarde o Miguel Quina parece que o vendeu à Biblioteca Nacional.”
O banqueiro levantou-se às 3 da manhã e lá foi explicar que tinha sido ele a comprar o livro, através de uma das suas empregadas. “Depois já me tratavam por Vossa Excelência na PJ… então há bocado eu era inimigo público número 1 e agora já sou excelência?”, remata João Pires. "Aquilo foi um caso sério.
Os jornais diziam: ‘senhora misteriosa adquiriu por 400 contos o primeiro livro impresso em Portugal. A compradora nem regateou e deu nome e morada falsa’”. E depois de tanta comoção, onde foi então parar o mais antigo livro impresso em Portugal? “Uns anos mais tarde o Miguel Quina parece que o vendeu à Biblioteca Nacional.”
O futuro d’O Mundo do Livro
Livreiro
que anda atrás de tantos livros acaba por acumular histórias, fruto de
uma vida passada numa loja de portas abertas para o mundo.
Alia-se a isto uma curiosidade inata e um “faro” adquirido pela experiência e o resultado são bons negócios e clientes fiéis. “Um dia entra-me aqui uma senhora, ainda lá no vão de escada, para me vender um livro”, começa por relembrar João Pires. “Era uma coisa enorme, eu abro aquilo e até tinha uma fechadura; eu nunca tinha visto tal coisa numa encadernação.”
Tratava-se de uma reprodução da Magna Carta toda feita à mão em iluminura, “a lei que rege ainda hoje os ingleses”. O Sr. Pires fez alguma pesquisa sobre aquele achado e descobriu que um artista havia feito 4 exemplares: "um que está no Louvre, outro que está no Hermitage na Rússia, outro está no British Museum e aquele era o mais bonito de todos.”
Alia-se a isto uma curiosidade inata e um “faro” adquirido pela experiência e o resultado são bons negócios e clientes fiéis. “Um dia entra-me aqui uma senhora, ainda lá no vão de escada, para me vender um livro”, começa por relembrar João Pires. “Era uma coisa enorme, eu abro aquilo e até tinha uma fechadura; eu nunca tinha visto tal coisa numa encadernação.”
Tratava-se de uma reprodução da Magna Carta toda feita à mão em iluminura, “a lei que rege ainda hoje os ingleses”. O Sr. Pires fez alguma pesquisa sobre aquele achado e descobriu que um artista havia feito 4 exemplares: "um que está no Louvre, outro que está no Hermitage na Rússia, outro está no British Museum e aquele era o mais bonito de todos.”
Com uma
relíquia daquelas a entrar-lhe na loja, faltava agora encontrar um
cliente disposto a pagar os 70 contos que a senhora pedia e cuja quantia
o nosso livreiro não tinha. Mas João Pires sabia perfeitamente a quem
ligar e a chamada para Castelo Branco não se fez esperar.
Do outro lado da linha, o cliente habitual José Maria de Almeida Garrett respondeu: "Ó Pires, mas eu vou agora para a Granja passar uns dias para o Norte.” João Rodrigues Pires ofereceu-se para lá ir ter e no dia seguinte estava a mostrar o achado ao potencial comprador.
Muito prontamente, José Maria de Almeida Garrett conclui o negócio - passou um cheque de 100 contos ao alfarrabista e disse: “Ó Pires, 30 contos é para o comboio”. Eram, como diz o Sr. Pires, outros tempos: “Eram clientes assim, já não há disso, acabou.”
Do outro lado da linha, o cliente habitual José Maria de Almeida Garrett respondeu: "Ó Pires, mas eu vou agora para a Granja passar uns dias para o Norte.” João Rodrigues Pires ofereceu-se para lá ir ter e no dia seguinte estava a mostrar o achado ao potencial comprador.
Muito prontamente, José Maria de Almeida Garrett conclui o negócio - passou um cheque de 100 contos ao alfarrabista e disse: “Ó Pires, 30 contos é para o comboio”. Eram, como diz o Sr. Pires, outros tempos: “Eram clientes assim, já não há disso, acabou.”
Escassos
são os clientes de antigamente, mas também são cada vez mais raros
livreiros como o Sr. Pires.
Não se sabe o que poderá acontecer ao Mundo do Livro, porque embora haja pessoas imortais, o Sr. Pires, não será eterno. Por enquanto, continua à frente da livraria que fundou, sempre de portas abertas para todos aqueles que queiram seguir a sua curiosidade.
Não se sabe o que poderá acontecer ao Mundo do Livro, porque embora haja pessoas imortais, o Sr. Pires, não será eterno. Por enquanto, continua à frente da livraria que fundou, sempre de portas abertas para todos aqueles que queiram seguir a sua curiosidade.