(PÚBLICO, 3 DE NOVEMBRO DE 2012)
Antes da caça, e mesmo nos primeiros tempos da caça, os homens dedicavam-se à recolecção. Como os outros primatas, seus parentes próximos, o homem andava pela terra recolhendo frutos, bagas, pequenos animais, talvez insectos, o que havia. Andava de bosque em bosque, de rio em rio, e tinha sempre que andar sem parar para obter novo alimento. Os teóricos dizem que a maioria destas comunidades primitivas não era hierarquizada, porque não havia excedentes cuja distribuição implicaria retenção e poder para reter e distribuir, mas nem sempre é assim.
Ainda hoje há caçadores recolectores e essa é a minha tribo. Como eles, também faço parte de uma espécie em extinção: os caçadores e recolectores da memória numa sociedade em que a memória está por muito baixa conta. Memória física de papéis, livros, revistas, jornais, gravuras, objectos, manuscritos, efémera. No meio da selvajaria dos tempos de hoje, direi, como ontem se dizia e hoje está em desuso, que esta actividade tem sido um lenitivo para a exibição de presunção ignorante e pura patetice em que estamos mergulhados. Mas tinha prometido a mim próprio que esta semana deixava a miséria quotidiana em paz e o mal à solta. Tenho que parar, para não voltar sempre à mesma coisa, fundida, ou refundida que esteja, nestes dias indignos.
Voltemos à caça e recolecção. Todos os dias, é sempre bom repeti-lo, milhares de documentos únicos desaparecem, sejam papéis pessoais, um livro de actas, um relatório colonial com fotografias únicas, um objecto icónico de um tempo, uma organização ou uma ideia. Hoje, em cada manifestação de rua, vai-se embora no lixo, um cartaz, um papel, uma imagem única que não ficou gravada em nada. Nos últimos meses, salvei, com muita alegria e gosto, várias peças dessa memória em acelerada destruição, um longo manuscrito, escrito a lápis, sobre o quotidiano da logística da guerra na Guiné, um relatório com fotografias originais sobre as inundações de 1967, notícias sobre os portugueses no Havai no início do século XX, umas actas socialistas do final do século XIX e início do século XX, notas de reuniões estudantis do tempo da crise de 1962, alguns jornais de muito pequena tiragem do tempo do PREC, e por aí adiante. Já não é a primeira vez que falo disto, mas esta é uma publicidade que faço intencionalmente, para impedir mais destruições na morte de um pai, numa mudança de casa, num divórcio complicado, ou pura e simplesmente, na gigantesca incúria administrativa de muitas instituições, na insensibilidade de outras e na falta de recursos generalizada.
Salvo raras excepções, esta é uma actividade mal vista por muitas das instituições oficiais, e por alguns profissionais que deveriam ter um papel deste tipo e não têm. Por um lado, é sempre uma competição que não desejam, por outro é muitas vezes a demonstração de que é possível fazer muito mais com pouco dinheiro, mas mais gosto e diligência. Desconfiam dos que consideram “amadores”, com muita arrogância corporativa, e já uma vez tive que lembrar que sem os amadores não tinha havido a recolha musical de Giacometti, nem a obra do abade de Baçal, nem o Dicionário Bibliográfico de Inocêncio, e que, com muitos defeitos, cada uma destas obras salvou muito mais da nossa memória do que a burocracia académica e corporativa.
Giacometti veio para Portugal não para fazer qualquer tese de doutoramento, mas porque estava tuberculoso. Vinha de uma vida errática de muitos empregos e de uma expulsão do ensino por causa do seu envolvimento na causa da independência argelina. Em Portugal, registou o som do nosso povo, em riscos de se perder pelo fim do mundo rural, e pela competição da televisão. Francisco Manuel Alves, abade de Baçal, era um pároco de aldeia, nas profundezas de Bragança, típico caçador-recolector, desorganizado e nem sempre rigoroso, mas sem ele muito se teria perdido das Memórias arqueológico-históricas do distrito de Bragança: repositório amplo de notícias corográficas, hidro-orográficas, geológicas, mineralógicas, hidrológicas, biobibliográficas, heráldicas.
Inocêncio da Silva tinha apenas uma educação comercial. Na sua Carta apologética (…) prevenindo as increpações que possam ser-lhe dirigidas de futuro, escreve que “os esclarecidos estadistas, por felicidade do país incumbidos do governo supremo da república“, o mais que lhe permitiam era deixá-lo consumir-se “no expediente maquinal e subalterno das minúcias administrativas“, ou seja, mandar a juízo “um ratoneiro, que sacara algum lenço das algibeiras alheias“, ou um vendedor clandestino da lotaria espanhola, ou a passar o dia a escrever editais para impedir que se deitem no S. António bichas de rabiar.
Inocêncio a seguir explica que, depois disto tudo, voltava a casa para continuar a trabalhar muitas horas no seu dicionário, cujas despesas suporta, visto que o máximo que a Imprensa Nacional lhe dá é a possibilidade de vendar alguns volumes. Inocêncio queixa-se de como a sua obra merece elogios estrangeiros e “vitupérios da casa” e mesmo um “lorpa” chamou-lhe “trapeiro de folhetos”. A sua conclusão é de enorme actualidade: “cada dia mais me convenço de que para a nossa geração actual livros da índole do Dicionário Bibliográfico são trastes não só dispensáveis, mas também completamente inúteis.”
Depois de construir o meu “Gabinete de Curiosidades”, que fazer dos frutos da caça e recolecção?
Deixar de herança não é solução, porque uma vez atingida uma certa dimensão, só uma dedicação quase absoluta pode continuar este trabalho. Nenhuma destas colecções aguentou mais do que duas gerações e raras chegaram às três, e compreende-se que assim seja. Havia depois três alternativas: vender, doar ao Estado, criar uma fundação.
Vender está para mim fora de causa, mas às vezes apetece e compreendo que alguns o façam: perante a incúria do Estado e a hostilidade corrente. Apetece pegar nas coisas e melhorar a vida com a recompensa não só dos gastos como do trabalho de organização, que, como se sabe, é um dos principais valores incorporados. E claro que há mercado, a começar por muitas instituições estrangeiras que estão aí bem presentes no país, a comprar espólios únicos, cujos donos, por necessidade ou raiva com a sua terra e as suas instituições, os preferem vender. Não é o meu caminho.
Doar ao Estado é contrário ao espírito deste tipo de caça-recolecção, que é suposto ser uma actividade da sociedade e na sociedade, complementar mas diferente daquela que realizam instituições que têm meios e recursos muito maiores, mas que também paralisam mais facilmente. De igual modo, a sensibilidade arquivista do Estado é demasiado conservadora e não é por acaso que instituições como a BDIC, a Hoover e o Instituto de História Social de Amesterdão começaram de forma diferente e evoluíram de forma diferente. Para além disso, o Estado não cuida dos seus bens, e muito menos vai fazê-lo nos tempos mais próximos. Espólios doados ao Estado, quando este os aceita, visto que muitos são recusados, estão por tratar, fechados e inacessíveis.
Sobra a criação de uma fundação, que até há uns meses era uma actividade benemerente, vista positivamente pela comunidade, hoje passa por ser uma actividade criminosa. Há cada vez mais dificuldades e não é pelas razões moralizadoras que por aí circulam. Dois grandes responsáveis por esse processo de ignomínia das fundações são os que abusaram do seu estatuto, incluindo grandes empresas que usaram e usam as fundações para operações fiscais, e o Estado, que permitiu esses abusos e cometeu ele próprio o maior, ao usar o estatuto das fundações para desorçamentação e para alargar o campo dos jobs for the boys.
É interessante verificar que, depois de um relatório feito com os pés, a maioria das aberrações continua a funcionar e a única coisa que vai ficar é uma lei mal feita, cheia de erros, estatista e prepotente, assente na desconfiança do Estado em relação a tudo o que seja privado, e obrigando as fundações a gastar os seus recursos mais para manter uma burocracia interna do que para prosseguir os fins que os seus doadores pretendiam.
Sim, porque o acto inicial de uma fundação privada é uma oferta a todos de bens até então privados, e muitas fundações podem viver sem dinheiros do Estado. Podiam, mais do que o que podem, porque o Estado, em vez de usar a concessão da utilidade pública como mecanismo de distinguir quem a tem, de quem apenas a quer para obter benefícios fiscais, prefere destruir esse mecanismo de doação aos portugueses, que é a criar uma instituição de serviço público, que actua em áreas onde ou não há dinheiro do Estado, ou onde a centralização desertificou recursos e oportunidades.
Eu, que fui estúpido em não querer nunca criar uma fundação enquanto tive funções políticas, e que sou igualmente estúpido em vir falar disto em público, vejo-me agora a braços com uma lei absurda que só atinge quem quer, como antes se dizia e agora não se usa, “fazer o bem”, sem impedir qualquer abuso quer do Estado, quer daqueles que por aí passam com um olho, em terras de cegos. Vamos ver como as coisas evoluem.