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29.5.22

LUÍS NORONHA DA COSTA

 

Luís Noronha da Costa: Os leilões são o grande cancro dos artistas

Apontado como um dos grandes artistas portugueses da segunda metade do século XX, Luís Noronha da Costa diz que os leilões são os maiores inimigos dos pintores. Fez 75 anos no dia 17 de Abril e parte do seu trabalho está na Casa-Museu Medeiros e Almeida.



Miguel Baltazar

Tem como "livro de cabeceira" a obra de Heidegger. Luís Noronha da Costa é "um pintor animado pela filosofia". E pelo mar. Nasceu e cresceu junto dele, em São Pedro do Estoril. Atravessava a marginal e tocava nas rochas. Desenhava os barcos que passavam. Neto de condes e viscondes, ele era o menino D. Luís Mário no Colégio São João de Brito. Estudou Arquitectura, simpatizou com o PCP, lançou-se nas artes plásticas. Nos anos 70, os seus quadros valiam quase tanto como os de Gerhard Richter na altura. Hoje, está a desfazer-se de trabalhos dos quais nunca pensou desfazer-se. Sente-se furioso, critica os leilões e os leiloeiros, mas continua a pintar. Continua preguiçosamente a pintar. Fez 75 anos no dia 17 de Abril e parte do seu trabalho está na Casa-Museu Medeiros e Almeida na exposição "Isto não é só um écran - Noronha da Costa - 50 anos de pintura".


Entra-se e do lado direito está o mar, em forma de desenho. É o mar de Luís Noronha da Costa e fica até amanhã na Casa­-Museu Medeiros e Almeida, em Lisboa. Ele era menino, vivia em São Pedro do Estoril e da janela de casa via os barcos que chegavam e partiam da barra. Pintava os barcos e pintava o mar. Era o seu mar, aquele que transplantou para as obras e para a vida. Luís Noronha da Costa, o menino D. Luís Mário no Colégio São João de Brito, neto de condes e viscondes, estudou Arquitectura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, trabalhou com o arquitecto Manuel Tainha, descobriu novos mundos e lançou-se nas artes plásticas. Destacou-se através de colagens, algumas delas feitas com páginas arrancadas a revistas de moda e pintadas com óleo de linho. Dedicou-se depois à criação de objectos, passou dos objectos para a pintura de imagens difusas ou "fantasmais", como lhes chamou Eduardo Lourenço. "Não sou um pintor de coisas e de factos, mas das imagens das coisas", diz o artista plástico, que adoptou a tinta celulósica em spray para esfumar a sua pintura. Representou Portugal na Bienal de São Paulo (1969) e na Bienal de Veneza (1970) e, em 1999, foi­-lhe atribuído o Prémio Europeu de Pintura pelo Parlamento Europeu. Apontado como um dos grandes artistas portugueses da segunda metade do século XX, Noronha da Costa sente-se hoje um pouco esquecido pela sociedade. "Penso que sou um indivíduo do azar."


  

A sua exposição chama-se "Isto não é só um écran". O que é "isto", então?

Trata-se de uma leitura crítica do meu curador, Bernardo Pinto de Almeida, e da Teresa Vilaça, directora da Casa-Museu Medeiros e Almeida. Em tempos, eu pintei "Isto é um écran", eles pegaram nessa ideia e ironizaram. "Isto não é só um écran" é, no fundo, pintura depois da pintura ou pintura que vem construir-se a partir da pintura.

 

Em 1972, Eduardo Lourenço utilizava mesmo a expressão "pintura-pintura" para descrever a sua obra. Falava também no carácter "fantasmal" dos seus trabalhos.

Ele escreveu isso há muito tempo – e eu fiquei muito contente – sobre a minha série de quadros com as figuras difusas, baseadas em fotografias de 1900. Eduardo Lourenço disse uma coisa que eu gostei imenso: a representação morreu, viva a representação dessa mesma morte. Isto, em 1972! Penso que há uma continuidade e uma coerência no meu trabalho ao longo do tempo.

 

Focado na solidão da imagem.

Pois, focado na imagem que fica. Depois de uma contemplação prolongada, nós queremos construir ou reconstruir na nossa mente a figura que está ali representada, desfocada ou, como eu prefiro dizer, difusa, como se estivéssemos a tentar reconstruir essa figura no espaço real.

 

Em 1974, o preço de um quadro meu de tamanho médio em leilão chegava a 75 contos, o valor pelo qual o Richter estava a vender na altura. Neste momento, estou quase sem vender.

 

É um pintor animado pela filosofia, como escreveu José Gil. Que filósofos estão na sua obra?

Sim, Heidegger, Nietzsche e, em tempos idos, Marx. Mas gosto mais do Heidegger. Aliás, o meu livro de cabeceira é o Heidegger. Ainda é! Vou sempre relendo e descobrindo coisas novas. O Heidegger é o homem mais capaz de entender o que tem sido a estética ao longo dos séculos. Em termos de pensar a arte, ele é o máximo, ele é o maior.

 

O mar e os barcos também estão muito presentes nas suas pinturas.

Quando era criança, tive a sorte de viver numa casa junto ao mar, na marginal, então ia para a janela e ficava a desenhar, desenhava um barco ou outro que estivesse a entrar ou a sair da barra. Vivia em São Pedro do Estoril, que na altura era uma terra simpática, era uma maravilha, eu atravessava a estrada e via as rochas. Nos temporais de Inverno, costumava ir para o Guincho ou para a Boca do Inferno, eram os meus locais de prazer. O meu mar começa aí, aos cinco, seis anos até aos 12 anos. Teria uns 10 anos quando pintei um navio da armada americana. Tive uma doençazeca daquelas, uma coisa quase mortal, passei um mês só a beber água e a comer fruta, e precisava de apanhar sol. Foi então que vi um belo couraçado americano, foi uma festa ver uma coisa daquelas ali... Esse era o meu mar que depois transplantei para outras coisas. O mar faz parte de mim, nasci ao pé dele, vivi ao pé dele, e agrada-me muito pintá-lo.


 

O seu nome completo é Luís Mário de Sousa Azevedo de Noronha e Meneses da Costa, é neto de condes e viscondes. Teve uma infância muito diferente das outras crianças?

Não, por acaso, não. Andei na escola pública em São Pedro do Estoril e tinha muitos amigos, a vida era uma maravilha para mim. Mas, quando chego ao liceu, a minha mãe resolveu pôr o menino no Colégio São João de Brito e aí tive uma experiência extremamente traumática, detestável, terrível, pelas imposições jesuítas e pela alienação que ali se vivia. Por tudo. Eu, por exemplo, era tratado como D. Luís Mário...

 

Pertence a uma família brasonada e, pelo que li de uma entrevista sua, "ultra-reaccionária".

Sim, ultra-reaccionária, mas não gosto de falar disso. Tive uma educação rígida, mas continuei sempre a pintar. Depois fui para a Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa e, francamente, aquilo era outro mundo, eram outros colegas. Ao princípio, eles não gostavam de mim por causa do meu nome, depois isso diluiu-se. Estudei Arquitectura, cheguei a exercer, desenhei uma casa no Algarve que outros arquitectos gostaram muito, inclusive o Siza Vieira, mas os restantes projectos estão na gaveta ou andam por aí perdidos. Tenho pena, agora até pedi à minha filha para tentar juntar um ou outro rolo onde tenho alguns trabalhos de arquitectura.

 

Trabalhou com o arquitecto Manuel Tainha.

Sim, trabalhei, aliás, ele foi o melhor professor de Arquitectura que tive. Ele e, depois, o Nuno Portas, figuras quase opostas politicamente. O Manuel Tainha era marxista-leninista, o Nuno Portas era católico, era o chamado progressista de esquerda. Quer como professor, quer como crítico, tenho por ele uma admiração enorme, fizemos várias viagens de trabalho, ele ia como arquitecto, eu ia como estudante de Arquitectura. Chegámos a ir um congresso sobre urbanismo na Roménia, imagine, eu tinha vinte e tal anos. Foi um pouco complicado entrar no país, lembro-me de um colega de lá dizer que o sonho dele era viver num país como a Suécia. Falar à mesa era perigoso se determinadas conversas chegassem aos ouvidos do senhor Ceausescu.

 

Bebeu então do marxismo-leninismo e da esquerda progressista com os seus professores.

Sim, e ainda bem, foi um pouco de sorte que tive na vida, saí daquela parvoíce toda do Colégio São João de Brito e aproximei-me da arquitectura e do mundo em geral. O Manuel Tainha foi, de facto, um professor de Arquitectura espantoso e, curiosamente, o sonho dele era ser professor na Escola Superior de Belas-Artes, ele candidatou-se, mas não o deixaram leccionar dada a sua filiação partidária. A PIDE descobriu e ele foi proibido de dar aulas.

 

Não sei o que seria deste país sem a presença sempre activa do Partido Comunista. Tem um papel fundamental em termos de uma certa vigilância. 

 

O Luís Noronha da Costa chegou a estar filiado no PCP?

Não, o Partido Comunista tem sido muito simpático comigo, aliás, convidou­-me para assistir ao XX Congresso, eu não fui porque estava francamente adoentado na altura, mas enviei uma carta ao Jerónimo de Sousa a agradecer o convite. Se não estivesse doente, teria ido. Não que me reveja no partido, não me revejo mesmo nada, mas, de facto, não gosto da direita, eu queria ser qualquer coisa que o Bloco de Esquerda é, mas ao mesmo tempo não queria ser nada do que o Bloco de Esquerda é, porque, sinceramente, acho que é uma fantochada. Tudo menos o Bloco de Esquerda. Já o Partido Comunista é essencial. Não sei o que seria deste país sem a presença sempre activa do Partido comunista Português. Eu poderia ser um social-democrata de esquerda.

 

Quais são as suas grandes referências políticas, os grandes homens políticos em Portugal?

Para mim, o número 1 é o general Eanes. Ele é o grande génio político deste país do século XX e princípios do século XXI. À parte disso, é o meu maior amigo, é um homem extraordinário. Aliás, foi ele que nos salvou da guerra civil. Se o 25 de Novembro não tivesse sido no dia 25, mas no dia 26, Lisboa teria ficado cercada e teria havido uma grande guerra civil. Conheci-o quando foi criada a Comissão Nacional de Apoio à Recandidatura do Presidente Eanes (CNARPE). Ofereci-lhe uns seis quadros, ou sete ou oito. Eu também era amigo do Mário Soares, mas acho que o Mário Soares era um internacionalista e o Eanes era mais um universalista. O Eanes fez coisas extraordinárias, o Mário Soares também, mas menos e de uma maneira completamente diferente.


 

Como foi o seu 25 de Abril?

Em casa, a ver televisão, não fiz nenhuma festa porque, realmente, não existiam verdadeiros partidos políticos em Portugal, o partido dito social-democrata só aparece depois do 25 de Abril. De maneira que avistei logo um Portugal dominado pelo Partido Comunista, e chegou a dominar. Aí, sim, o Mário Soares teve um papel muito importante, mas realmente foi o chamado Grupo dos Nove e o general Eanes que tiveram um papel fundamental.

 

No pós-25 de Novembro acreditou no país. E hoje?

Ai, acreditei, mas continuo a pensar que este país precisa de um Partido Comunista a sério, como este é, que continue a ter um papel fundamental em termos de uma certa vigilância do próprio país. Os outros partidos, em geral, entendem menos de política.

 

Não integrou nenhum partido político nem nunca pertenceu a um movimento de artistas. Afirma-se como um artista solitário?

Penso que sempre fui um solitário. Depois, existiram determinados grupos de artistas que lançaram a ideia de que eu era um evocador do Gerhard Richter, que é para mim um dos maiores pintores vivos, sim senhor, mas resta sublinhar que as obras do Richter são muito diferentes das minhas, digo eu. Talvez tenham uma certa parecença formal que tem que ver com aquilo a que chamo de difusão e não desfocagem – a desfocagem tira-nos informação do objecto, a difusão coloca-nos o objecto no espaço, um pouco como os hologramas, é isso que eu faço. E faço-o, talvez, uns quatro ou cinco anos antes das primeiras experiências do Gerhard Richter nesse sentido. 

 

Internacionalmente, tem sido reconhecido

Sinceramente, não.

 

Em 1999 foi-lhe atribuído o Prémio Europeu de Pintura pelo Parlamento Europeu.

Ah, sim, foi, isso foi muito simpático. Eu até queria ter mais relação com o PS do que aquela que tenho, mas não vou culpar o Partido Comunista, pelo contrário, até teria mais prazer em fazer instalações para o PCP do que para qualquer outro partido. O Manuel Tainha, antes de morrer, fez um centro de actividades para uma vila do Alentejo que era do Partido Comunista e ficou extremamente comovido porque no dia da inauguração esteve lá o Álvaro Cunhal, que lhe disse algo como: eu sonhava com esta arquitectura para o partido.

 

Conheceu Álvaro Cunhal?

Apertei-lhe a mão uma vez no Palácio da Ajuda, fiquei impressionadíssimo porque aquele homem olhava-nos nos olhos e simultaneamente estava a ver através da nossa cabeça no infinito, é uma sensação extraordinária. Infelizmente, conversas não houve. Mas tenho a sorte de ter três desenhos dele... Um amigo do Cunhal que era MPLA tinha aqueles desenhos, acho que não gostava muito deles e eu chamei­-lhes um figo, guardei-os num lugar precioso em minha casa. Adoro aqueles desenhos. Considero o Álvaro Cunhal um desenhador. Ao nível do desenho, ele varre dois séculos da arte em Portugal, é extraordinário.


 

Diz muitas vezes que os leilões têm destruído a arte.

Ah, sim, são os maiores inimigos dos pintores, dos mais velhos aos mais novos. Está a aparecer gente com imensa qualidade mas as telas estão caríssimas, as tintas são caríssimas... Eu, neste instante, estou quase sem vender, quase todos os pintores estão sem vender, excepto os leilõezinhos que vendem coisas minhas ao desbarato. Actualmente, o grande cancro dos artistas em Portugal são os leilões. Sempre que tenho oportunidade de dizer mal dos leilões, não a perco. Tenho o pior a dizer dos leiloeiros, é gente pouco honesta, e eu tento fugir deles, vendendo directamente às pessoas.

 

O que determina hoje o valor de mercado de um artista?

Depende do êxito das exposições, dos países onde expuseram, das viagens que fizeram a Nova Iorque e a Milão. Depois, chegam aqui e fazem um nadinha mais à esquerda ou mais à direita. Os pintores que têm conseguido vender mais são os especialistas em marketing. Não cito nomes. 

 

Vendo a sua página pública de Facebook, parece bastante zangado.

Estou furioso! Este é o país do futebol.

 

Não gosta de futebol.

Detesto futebol.

 

Li que está a desfazer-se de obras que nunca pensou desfazer-se.

Estou. Esse é o lindo estado económico em que me encontro actualmente. Quando tinha 30 anos, aí pelos anos 1970, o valor das minhas obras andava perto, embora abaixo, de um Júlio Pomar e de uma Paula Rego. A Paula Rego foi aldrabada de todas as maneiras, o Pomar sempre soube defender-se com uma grande qualidade. Mas, sim, o valor das minhas obras tem vindo a cair. Em 1974, dias antes do 25 de Abril, o preço de um quadro meu de tamanho médio em leilão chegava a 75 contos, que era o valor pelo qual o Gerhard Richter estava a vender na Alemanha. Reservei dois quadros, que significava 75 contos mais 75 contos. Se, na altura, tivesse comprado o Richter, esses 75 contos valeriam hoje um milhão. Foi azar.

 

Para mim, o general Eanes é o grande génio político deste país do século XX e princípios do século XXI. 

 

Há sempre a questão da sorte e azar, e do acaso.

Eu penso que sou um indivíduo do azar.

 

Não mantém coleccionadores particulares das suas obras?

Tenho muitas obras lá fora, em coleccionadores particulares. Em Portugal, houve uma altura em que existia uma certa coerência por parte dos coleccionadores em relação à escolha dos pintores. A época de 1960, 1970 foi de grande abertura à arte nacional e internacional, e isso foi a coisa mais positiva dos tempos de Marcelo Caetano. Havia coleccionadores como o Jorge de Brito, pessoas com grande conhecimento, algumas viviam em Saint-Tropez. Tudo isso foi completamente ao ar. Agora, por exemplo, aparece um sujeito em minha casa e começa a tirar quadros da parede: quero este, este e este. E eu respondo: a porta é ali. Há indivíduos que decidem dizer: sou coleccionador, mas depois não sabem o que comprar. Falta um certo sentido de osmose, de coerência nas suas escolhas, algo que havia muito mais antes do 25 de Abril. Custa-me dizer isto, mas é verdade.

 

Na série documental "A arte e a mente", disse que podemos assistir ao fim da arte e que o pensamento terá de voltar à sua pobreza essencial. Como assim?

Acredito nisso, a Barbara Rose, crítica e curadora norte-americana, por quem tenho uma admiração enorme, estabeleceu uma ligação entre a minha pintura e o Fernando Pessoa. Dizia que a minha pintura era autóctone e universal, e eu fiquei muito sensibilizado com isso. Ela dizia que eu andava à procura de uma nova arte que possivelmente não iria encontrar, mas que quando essa nova arte surgisse eu de certeza que ficaria como pioneiro. Foi algo que me deixou muito contente. E foi através dela que consegui aprender alguma coisa de pintura americana. Depois da Segunda Guerra Mundial, Paris passa a não ser nada ou quase nada e tudo o que de mais importante e revolucionário se fez a partir dessa altura vem dos Estados Unidos da América. Para já, com (Jackson) Pollock, ele destrói, pela primeira vez na história da arte, o antagonismo entre figura e fundo numa certa fase do cubismo. Picasso também tentou, mas penso que quem dá o murro definitivo na mesa é o Pollock. A nível internacional, a América continua a dar cartas e há um europeu, o Richter, que já expôs no MoMA, e as cotações dele subiram ainda mais. Quem for ao MoMA, está salvo para o resto da vida.


 

Há obras de arte que valem milhões e milhões e milhões.

É uma loucura. Por exemplo, o Francis Bacon tem cotações altíssimas. Agora, os homens dos milhões são o Andy Warhol, o Pollock, praticamente incomparável, e o Mark Rothko.

 

E quais são as suas referências em Portugal?

Ai, o pintor português que mais gosto é o meu grande amigo (António) Costa Pinheiro, infelizmente já morreu. As obras dele foram uma lufada de ar fresco. Com a série de retratos imaginários dos Reis de Portugal, saíram grandes colecções na Suíça, na Alemanha, etc. E há muita gente que eu admiro tanto..., o João Hogan – não sei como é que estes indivíduos ainda não perceberam o valor do Hogan –, a Paula Rego, o Jorge Martins, há tanta gente de grande qualidade.

 

As suas imagens também estão no cinema. Nos anos 1970, realizou muitos filmes.

Foi um filme, os outros são pequeninos, em 8 mm, super 8 mm e 16 mm, mas o único que guardo mesmo como significativo é o "O Construtor de Anjos" (1978) – exibido na Cinemateca no dia 6 de Abril. Tinha um outro, chamado "D. Jaime ou a Noite Portuguesa" (1974), em super 8 mm, feito com o actor André Gomes e com a Rita Azevedo Gomes. E fiz mais uns quantos filmezitos. Depois continuei preguiçosamente a pintar, sou preguiçoso acima de tudo, sou preguiçoso ao máximo… e é isso. 



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25.5.22

CASCAIS VILLA VAI SER DEMOLIDO.

 

 O centro comercial CascaisVilla, localizado à entrada da vila de Cascais, vai ser demolido e ali vai nascer um projeto de requalificação que conjugará habitação com comércio e que será assinado por um “arquiteto internacional de referência”, revelou o presidente da Câmara Municipal de Cascais, Carlos Carreiras. Segundo o Expresso, o projeto em causa terá a assinatura do conceituado arquiteto britânico Norman Foster. A este projeto e investimento soma-se outro que vai nascer no icónico edifício do Pão de Açúcar, que também será demolido para serem construídos empreendimentos residenciais.

Citado pela publicação, o autarca confirmou a demolição do CascaisVilla, que tem como proprietário a Bain Capital, sociedade de investimento sediada nos EUA, e explicou que a mudança prevista para a zona “vai permitir uma área de implantação mais pequena, com o espaço a ficar repartido por vários edifícios, abrindo mais a rotunda e fazendo uma praça na parte de trás, com a possibilidade de outros usos”. 

“Finalmente conseguimos resolver o CascaisVilla e para isso foi precisa muita teimosia, mas felizmente neste momento está resolvido, irá abaixo, irá fragmentar-se em vários edifícios e terá uma função diferente daquela que tem hoje”, explicou Carlos Carreiras, estimando que o edifício venha abaixo no espaço de dois a três anos. Já a requalificação demorará, depois, outros dois a três anos.

 


 

20.5.22

ABELHAS. HÁ QUE AS PROTEGER

 


A abelha é essencial para o nosso ecossistema.

Da próxima vez que ouvir um 'bzzz', pense duas vezes antes de matar uma abelha. Embora quase metade dos portugueses (47%) desconheça este facto, o planeta Terra não sobreviveria mais de quatro anos sem a abelha, revela a TaskRabbit em comunicado, a propósito do Dia Mundial da Abelha, que se assinala esta sexta-feira, 20 de maio.

A verdade é que "muita da nossa comida depende significativamente da polinização natural de insetos, como é o caso das abelhas". Sem esta ação, cerca de um terço das colheitas teriam de ser polinizadas de outra forma, ou sofreriam uma queda drástica na sua produção.

De igual forma, muitas plantas selvagens (entre 60-90%) carecem de polinização animal para se reproduzirem. Por isso, outros ecossistemas e habitats selvagens também acabam por, direta ou indiretamente, depender de insetos polinizadores.

A presença de uma colónia de abelhas também funciona como um indicador da saúde de um ecossistema: quanto maior o número destes insetos e o tempo que perdurarem num local, maior a sua saúde. As abelhas são insetos bastante sensíveis e com pouca tolerância a alterações climáticas.

Assim, é vital que o ser humano aprenda a conviver com elas e, mais importante, a contribuir ativamente para a sua sobrevivência e reprodução. A pensar nisso, a TaskRabbit reuniu dicas que irão ajudá-lo a ser mais 'bee-friendly’. 

Construa um abrigo para abelhas

Como a grande maioria dos invertebrados, as abelhas precisam de um sítio para criar ninho e hibernar. Neste sentido, é possível criar um abrigo de raiz ou comprar um hotel para abelhas. Depois, basta pendurá-lo num local com sombra e ver os pequenos insetos a voar durante a primavera e o verão.

Ajude uma abelha

Durante o verão é comum encontrar uma abelha solitária sem se mexer no chão e, embora possa parecer morta, as hipóteses de que esteja apenas exausta e a precisar de uma mão são grandes. Nestes casos, basta misturar duas colheres de sopa de açúcar branco - de preferência granulado - com uma colher de água, e colocar a mistura perto da abelha para que ela se possa servir.

Tenha uma fonte de néctar em casa

Ter alguma variedade de flores, especialmente se tiver um jardim ou canteiro, garante que as abelhas tenham acesso a uma fonte de néctar de março a outubro. Plantar durante o inverno pode ser uma boa solução para assegurar que na primavera terá plantas suculentas. Segundo a TaskRabbit, 74% dos portugueses não sabem que algo tão simples como plantar prímulas, budleias ou Flor-de-mel, calêndulas (bem-me quer), manjericão, funcho, orégãos, alecrim, tomilho ou hortelã-pimenta, já representa um contributo para o ecossistema das abelhas.

Opte por mel sustentável

Afinal o mel é bom ou mau para as abelhas? Quando feita como deve ser, a apicultura pode ser benéfica para populações selvagens e ainda permitir aos seres humanos desfrutar do mel. Pesticidas são muitas vezes utilizados na agricultura para afastar pragas. As abelhas podem apanhá-los ao realizarem a polinização e levá-los de volta para a colmeia, colocando em perigo a restante população, e podendo afetar a qualidade do mel. Por conseguinte, a compra de mel deve ser tão local quanto possível, de apicultores individuais que pratiquem sustentabilidade.

17.5.22

Centro em Vila do Conde estuda fenómenos aéreos "extraordinários"

 Lusa

Um grupo de antigos investigadores criou o Centro de Investigação de Fenómenos Aeroespaciais (CIFA), em Vila do Conde, no distrito do Porto, que pretende avaliar e estudar fenómenos aéreos "extraordinários" no país e auxiliar a população a compreendê-los.


Em declarações à agência Lusa, Vítor Moreira, um dos fundadores e presidente do CIFA, esclareceu hoje que a intenção é "conseguir estudar e investigar fenómenos extraordinários" que ocorrem no país e, consequentemente, fazer a sua "validação científica".

"Não vamos andar atrás de luzes, nem identificar fenómenos a grande distância", referiu Vítor Moreira, salientando que o objetivo é tratar "com seriedade" os fenómenos aeroespaciais extraordinários e auxiliar a população a compreendê-los. 

"Atualmente há a necessidade de esclarecer a população e fomentar uma opinião mais balizada do que são estes fenómenos", defendeu, acrescentando que o CIFA "não se baseia em teorias de conspiração".

Fundado em julho de 2021 por uma equipa de investigadores que nas décadas de 1980 e 1990 estudavam estes fenómenos, o CIFA é atualmente composto por uma equipa multidisciplinar que inclui advogados, engenheiros, jornalistas e agentes de autoridade.

O estudo, análise e investigação de fenómenos aeroespaciais desencadeados pelo centro tem por base arquivos - físicos e digitais -, bem como documentos e relatórios de outras organizações que têm vindo a ser recolhidos "nos bastidores e anonimato", desde 2018.

Além da documentação, o trabalho do CIFA tem também por base a informação divulgada nos meios de comunicação social portugueses, "importante fonte" na qual a equipa vai também focar as suas atenções, confrontando-a com o conhecimento de outras entidades como o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).

"Em Portugal existem quase dois mil registos de acontecimentos extraordinários. Temos relatos de casos muito fidedignos, mas não deixa de ser o diz que disse. Sabemos que narrativas são narrativas e nós queremos ir mais além", salientou.

Neste momento, o CIFA está a desenvolver "equipas de intervenção rápida" no Porto e em Lisboa, que, munidas de material científico de análise de dados, vão "validar os fenómenos".

"Queremos posteriormente criar protocolos de colaboração efetiva com a Força Aérea e a Guarda Nacional Republicana (GNR) para chegar até aos casos isolados que possam ocorrer no interior do país", disse, justificando que o propósito é "atuar rápido e fazer um apuramento mais eficaz".

À Lusa, Vítor Moreira destacou que a equipa já desenvolveu "um trabalho de apuramento de acontecimentos que foram relevantes no ano passado", que resultou no Relatório Anual de Ocorrências, no qual "nenhum caso foi dado como extraordinário", tendo existido uma explicação e validação científica para os 19 acontecimentos avistados.

"Maioritariamente, a percentagem de casos explicados envolve a tecnologia dos 'drones', que continua a fazer erráticas interpretações, assim como vários tipos de balões", afirmou o responsável.

Vítor Moreira salientou que o CIFA espera no próximo ano apresentar "um modelo mais consistente e apurado" dos relatos recebidos, projetando para 2023 continuar a trabalhar "não com hipóteses, mas com certezas".

15.5.22

O ESCÂNDALO DA RAZÃO

 

Kierkegaard, e “a prova para acreditar”

Filed under: O. Braga @ 11:36 pm

1/ Do ponto de vista da ortodoxia católica, Kierkegaard é um herético, assim como o fideísmo é incompatível, por exemplo, com as ideias de S. Tomás de Aquino, ou mesmo com as de Santo Anselmo de Aosta.

2/ Ao contrário do que se passa com a filosofia: antes que se colocasse a religião cristã ao serviço do homem (como defende aqui a professora Helena Serrão), foi preciso que alguém se pusesse ao serviço de Deus.

A religião não é conclusão de um raciocínio, nem exigência da Ética, nem estado de sensibilidade, nem instinto, nem produto social: a religião não têm raízes no Homem — ao contrário do que se passa com a filosofia.

3/ A professora Helena Serrão escreve:

“A busca do sentido [da vida] é precisamente a tentativa de resolver o conflito que não é resolúvel em termos intelectuais, pelo contrário, intelectualmente não há uma síntese, intelectualmente só há antítese. Trata-se de acreditar sem que intelectualmente haja provas ou evidências sensíveis.”

Temos que saber o que significa “prova”, ou “evidências sensíveis” que parece serem sinónimos.

Em matemática, a “prova” é reduzida à sua expressão mais simples já que consiste em deduzir um resultado a partir de regras propostas e explicitadas (por exemplo, a “prova dos nove”).

Em filosofia, e na medida em que o discurso filosófico está assente no princípio da não-contradição, a “prova por redução ao absurdo” – que consiste em demonstrar que nos contradizemos – conserva alguma eficácia.

De facto, não há prova em filosofia se nos recusarmos a ser convencidos: só há demonstrações sob a forma de discursos parciais cuja coerência nos pode remeter, segundo os casos: 1/ para uma autoridade exterior; 2/ para um sistema de referência crítica que reduz a filosofia à sua própria epistemologia; 3/ para a ambição “admissível” ou “inadmissível” de um discurso uno e total.

Segundo Karl Popper, não é possível compreender totalmente uma teoria formulada, porque é impossível conhecer todas as suas conclusões lógicas — ou seja, é impossível excluir o surgimento de contradições internas dentro de uma teoria.

A verdade científica não pode ser provada com certeza nem através da experiência e nem através da intuição intelectual, porque na ciência não existe nenhum indicador infalível para a verdade.

O teórico das ciências alemão, Wolfgang Stegmüller, defendeu mesmo que a noção de “verdade” não pertence à ciência, mas antes pertence à teologia.

Em bom rigor, não pode ser encontrado uma “prova” concludente para uma “evidência” tão simples como a existência de um mundo exterior a nós próprios. Kant chamou a isto “o escândalo da razão”.

A moderna teoria da ciência formula, com Karl Popper, uma versão mais moderada do “escândalo da razão” de Kant: segundo Karl Popper, “o mundo exterior [a nós próprios] é uma hipótese de trabalho para a ciência da natureza”.

14.5.22

Eclipse total da Lua em Portugal

Um eclipse lunar total vai iluminar o céu de Portugal. O fenómeno, que vai pintar a lua de tons vermelhos e alaranjados, decorre entre a noite de domingo e o início da manhã de segunda-feira, de acordo com o Observatório Astronómico de lisboa (OAL).

Esta será a primeira "lua de sangue" do ano e vai ser possível observá-la na metade leste da América do Norte e em toda a América Central e do Sul, que vão ter uma vista privilegiada sobre todo o fenómeno lunar, caso o clima o permita. As várias fases parciais do eclipse também vão ser visíveis na Europa, em África e no Médio Oriente, só deixando de fora o Alasca, a Ásia e a Austrália.

“É um evento gradual, lento e maravilhoso", considera o geólogo planetário da NASA, Noah Petro. 

Eclipse total da Lua em Portugal

Na madrugada da próxima segunda-feira a Lua vai entrar na penumbra da Terra às 02:31. A partir desse momento, a Lua vai começar a escurecer de forma progressiva, adquirindo tons mais acinzentados.

De acordo com o Observatório Astronómico de Lisboa, os tons avermelhados e acastanhados surgem por volta das 03:28, quando a Lua entrar na sombra da Terra.

O eclipse total vai acontecer às 04:29, momento em que a Lua ficará totalmente dentro do cone de sombra da Terra.

"De facto, durante um eclipse lunar os raios solares incidem na Lua após atravessarem a atmosfera terrestre onde são dispersados e perdem uma grande quantidade de luz azul e verde. Assim, durante o eclipse, a Lua não é iluminada com luz branca mas sim com luz mais avermelhada.", lê-se na nota do Observatório, que realça que o máximo do eclipse ocorrerá às 05:12, quando a Lua está no centro da sombra da Terra. A fase de Lua cheia ocorre apenas dois minutos depois, às 5:14.

Pelas 5:54 termina o eclipse total, perdendo a Lua o tom avermelhado e, de forma progressiva, voltando ao tom cinzento-escuro. O fenómeno termina totalmente cerca das 07:52.

Em Portugal ou não, poderá sempre assistir ao fenómeno através do site da NASA, onde haverá uma transmissão ao vivo do eclipse a partir de vários locais. O próximo Eclipse Total da Lua só vai acontecer a 8 de novembro, por isso vale a pena espreitar este.

A espaçonave Lucy da NASA irá fotografar todo o evento lunar a 103 milhões de quilómetros de distância.

 

9.5.22

OFÍCIO DE CAÇA E RECOLECÇÃO

 

(PÚBLICO, 3 DE NOVEMBRO DE 2012)


Antes da caça, e mesmo nos primeiros tempos da caça, os homens dedicavam-se à recolecção. Como os outros primatas, seus parentes próximos, o homem andava pela terra recolhendo frutos, bagas, pequenos animais, talvez insectos, o que havia. Andava de bosque em bosque, de rio em rio, e tinha sempre que andar sem parar para obter novo alimento. Os teóricos dizem que a maioria destas comunidades primitivas não era hierarquizada, porque não havia excedentes cuja distribuição implicaria retenção e poder para reter e distribuir, mas nem sempre é assim.

Ainda hoje há caçadores recolectores e essa é a minha tribo. Como eles, também faço parte de uma espécie em extinção: os caçadores e recolectores da memória numa sociedade em que a memória está por muito baixa conta. Memória física de papéis, livros, revistas, jornais, gravuras, objectos, manuscritos, efémera. No meio da selvajaria dos tempos de hoje, direi, como ontem se dizia e hoje está em desuso, que esta actividade tem sido um lenitivo para a exibição de presunção ignorante e pura patetice em que estamos mergulhados. Mas tinha prometido a mim próprio que esta semana deixava a miséria quotidiana em paz e o mal à solta. Tenho que parar, para não voltar sempre à mesma coisa, fundida, ou refundida que esteja, nestes dias indignos.

Voltemos à caça e recolecção. Todos os dias, é sempre bom repeti-lo, milhares de documentos únicos desaparecem, sejam papéis pessoais, um livro de actas, um relatório colonial com fotografias únicas, um objecto icónico de um tempo, uma organização ou uma ideia. Hoje, em cada manifestação de rua, vai-se embora no lixo, um cartaz, um papel, uma imagem única que não ficou gravada em nada. Nos últimos meses, salvei, com muita alegria e gosto, várias peças dessa memória em acelerada destruição, um longo manuscrito, escrito a lápis, sobre o quotidiano da logística da guerra na Guiné, um relatório com fotografias originais sobre as inundações de 1967, notícias sobre os portugueses no Havai no início do século XX, umas actas socialistas do final do século XIX e início do século XX, notas de reuniões estudantis do tempo da crise de 1962, alguns jornais de muito pequena tiragem do tempo do PREC, e por aí adiante. Já não é a primeira vez que falo disto, mas esta é uma publicidade que faço intencionalmente, para impedir mais destruições na morte de um pai, numa mudança de casa, num divórcio complicado, ou pura e simplesmente, na gigantesca incúria administrativa de muitas instituições, na insensibilidade de outras e na falta de recursos generalizada.

Salvo raras excepções, esta é uma actividade mal vista por muitas das instituições oficiais, e por alguns profissionais que deveriam ter um papel deste tipo e não têm. Por um lado, é sempre uma competição que não desejam, por outro é muitas vezes a demonstração de que é possível fazer muito mais com pouco dinheiro, mas mais gosto e diligência. Desconfiam dos que consideram “amadores”, com muita arrogância corporativa, e já uma vez tive que lembrar que sem os amadores não tinha havido a recolha musical de Giacometti, nem a obra do abade de Baçal, nem o Dicionário Bibliográfico de Inocêncio, e que, com muitos defeitos, cada uma destas obras salvou muito mais da nossa memória do que a burocracia académica e corporativa.

Giacometti veio para Portugal não para fazer qualquer tese de doutoramento, mas porque estava tuberculoso. Vinha de uma vida errática de muitos empregos e de uma expulsão do ensino por causa do seu envolvimento na causa da independência argelina. Em Portugal, registou o som do nosso povo, em riscos de se perder pelo fim do mundo rural, e pela competição da televisão. Francisco Manuel Alves, abade de Baçal, era um pároco de aldeia, nas profundezas de Bragança, típico caçador-recolector, desorganizado e nem sempre rigoroso, mas sem ele muito se teria perdido das Memórias arqueológico-históricas do distrito de Bragança: repositório amplo de notícias corográficas, hidro-orográficas, geológicas, mineralógicas, hidrológicas, biobibliográficas, heráldicas.

Inocêncio da Silva tinha apenas uma educação comercial. Na sua Carta apologética (…) prevenindo as increpações que possam ser-lhe dirigidas de futuro, escreve que “os esclarecidos estadistas, por felicidade do país incumbidos do governo supremo da república“, o mais que lhe permitiam era deixá-lo consumir-se “no expediente maquinal e subalterno das minúcias administrativas“, ou seja, mandar a juízo “um ratoneiro, que sacara algum lenço das algibeiras alheias“, ou um vendedor clandestino da lotaria espanhola, ou a passar o dia a escrever editais para impedir que se deitem no S. António bichas de rabiar.

Inocêncio a seguir explica que, depois disto tudo, voltava a casa para continuar a trabalhar muitas horas no seu dicionário, cujas despesas suporta, visto que o máximo que a Imprensa Nacional lhe dá é a possibilidade de vendar alguns volumes. Inocêncio queixa-se de como a sua obra merece elogios estrangeiros e “vitupérios da casa” e mesmo um “lorpa” chamou-lhe “trapeiro de folhetos”. A sua conclusão é de enorme actualidade: “cada dia mais me convenço de que para a nossa geração actual livros da índole do Dicionário Bibliográfico são trastes não só dispensáveis, mas também completamente inúteis.”

Depois de construir o meu “Gabinete de Curiosidades”, que fazer dos frutos da caça e recolecção?

Deixar de herança não é solução, porque uma vez atingida uma certa dimensão, só uma dedicação quase absoluta pode continuar este trabalho. Nenhuma destas colecções aguentou mais do que duas gerações e raras chegaram às três, e compreende-se que assim seja. Havia depois três alternativas: vender, doar ao Estado, criar uma fundação.

Vender está para mim fora de causa, mas às vezes apetece e compreendo que alguns o façam: perante a incúria do Estado e a hostilidade corrente. Apetece pegar nas coisas e melhorar a vida com a recompensa não só dos gastos como do trabalho de organização, que, como se sabe, é um dos principais valores incorporados. E claro que há mercado, a começar por muitas instituições estrangeiras que estão aí bem presentes no país, a comprar espólios únicos, cujos donos, por necessidade ou raiva com a sua terra e as suas instituições, os preferem vender. Não é o meu caminho.

Doar ao Estado é contrário ao espírito deste tipo de caça-recolecção, que é suposto ser uma actividade da sociedade e na sociedade, complementar mas diferente daquela que realizam instituições que têm meios e recursos muito maiores, mas que também paralisam mais facilmente. De igual modo, a sensibilidade arquivista do Estado é demasiado conservadora e não é por acaso que instituições como a BDIC, a Hoover e o Instituto de História Social de Amesterdão começaram de forma diferente e evoluíram de forma diferente. Para além disso, o Estado não cuida dos seus bens, e muito menos vai fazê-lo nos tempos mais próximos. Espólios doados ao Estado, quando este os aceita, visto que muitos são recusados, estão por tratar, fechados e inacessíveis.

Sobra a criação de uma fundação, que até há uns meses era uma actividade benemerente, vista positivamente pela comunidade, hoje passa por ser uma actividade criminosa. Há cada vez mais dificuldades e não é pelas razões moralizadoras que por aí circulam. Dois grandes responsáveis por esse processo de ignomínia das fundações são os que abusaram do seu estatuto, incluindo grandes empresas que usaram e usam as fundações para operações fiscais, e o Estado, que permitiu esses abusos e cometeu ele próprio o maior, ao usar o estatuto das fundações para desorçamentação e para alargar o campo dos jobs for the boys.

É interessante verificar que, depois de um relatório feito com os pés, a maioria das aberrações continua a funcionar e a única coisa que vai ficar é uma lei mal feita, cheia de erros, estatista e prepotente, assente na desconfiança do Estado em relação a tudo o que seja privado, e obrigando as fundações a gastar os seus recursos mais para manter uma burocracia interna do que para prosseguir os fins que os seus doadores pretendiam.

Sim, porque o acto inicial de uma fundação privada é uma oferta a todos de bens até então privados, e muitas fundações podem viver sem dinheiros do Estado. Podiam, mais do que o que podem, porque o Estado, em vez de usar a concessão da utilidade pública como mecanismo de distinguir quem a tem, de quem apenas a quer para obter benefícios fiscais, prefere destruir esse mecanismo de doação aos portugueses, que é a criar uma instituição de serviço público, que actua em áreas onde ou não há dinheiro do Estado, ou onde a centralização desertificou recursos e oportunidades.

Eu, que fui estúpido em não querer nunca criar uma fundação enquanto tive funções políticas, e que sou igualmente estúpido em vir falar disto em público, vejo-me agora a braços com uma lei absurda que só atinge quem quer, como antes se dizia e agora não se usa, “fazer o bem”, sem impedir qualquer abuso quer do Estado, quer daqueles que por aí passam com um olho, em terras de cegos. Vamos ver como as coisas evoluem.

5.5.22

O SEGREDO .

 




 
- Não me abandones agora. Deixa-me ficar nos teus braços mais uns minutos. Aperta-me como antes, quando tínhamos dezasseis anos.
- Mas nós não temos mais dezasseis anos, Bárbara. Temos cinquenta e muita coisa passou por nós. Já não somos as mesmas pessoas que então éramos.
- Não é verdade, Tiago. Nós somos os mesmos. O mundo que nos rodeia é que é diferente. O teu coração, que eu ouço, bate como sempre bateu. Os teus braços envolvem-me do mesmo modo e os teus beijos têm o mesmo sabor da adolescência. Será que não sentes a mesma onda de calor que eu, nesta praia onde há tantos anos nos amávamos, neste céu que continua a nos envolver do mesmo modo?
Fica comigo, Tiago, nem que seja apenas por uma noite. Eu quero ficar contigo, relembrar outro tempo, que foi só nosso.
- O tempo que temos já não é mais nosso. O "nosso" é um possessivo que foi verdadeiro. Não é mais. Também a mim me sabia bem recordar a nossa história, descobrir em nós a rapariga e o rapaz que já fomos. Mas para quê?
- Fica comigo, Tiago. Só esta noite. Para que tenhamos uma lembrança viva, actual, do que ainda somos um para o outro.
- Não sei, Bárbara, se "ainda" é um termo que se aplique a nós...
- Se não ficares, Tiago, nunca saberás.

A noite ia longa naquela praia que foi, durante anos, o leito de amor dos dois adolescentes que ambos haviam sido. E onde acabaram por ficar, um no outro, aquela madrugada. 
Levantaram-se e caminharam mãos nas mãos à borda de água. Depois pararam, beijaram-se com sofreguidão e cada um caminhou para o seu carro. Para seguir a sua vida. Mas ambos tinham, agora, uma lembrança mais fresca, intensa, gostosa, um do outro. O que iriam fazer dela, no futuro, seria o segredo de cada um!


4.5.22

Um ponto de vista !

A Guerra da Ucrânia, entre a Rússia e os Estados Unidos

1. Os humoristas de serviço pretendem que é uma luta de valores entre o mundo liberal e o iliberal. Humor negro, porque o único valor que o financismo e o complexo militar-industrial conhecem é o do "deus-dólar" (Eça de Queirós).
 Dirigidos por estes, os Estados Unidos procuraram neutralizar a Rússia, seu único rival militar, minando-a por dentro e desestabilizando as repúblicas vizinhas que ainda não estavam integradas na Nato: Geórgia, Cazaquistão, Ucrânia.
 Os bidens e os johnsons não passam de marionetas ao seu serviço. Tudo estava a ser preparado com a Clinton; o Trump, bilionário autossuficiente, foi um parênteses. 
 
A Rússia sempre se dividiu historicamente entre o eslavismo antiocidental (Dostoievski, Soljenitsine) e a abertura ao Ocidente. A boa-fé e o ímpeto ocidentalizante foi torpedeado pela própria avidez dolarística. Diz-se que Putin, até aí defensor de uma cooperação, mudou de opinião quando assistiu à barbárie do Iraque e da invenção do pretexto da existência de armas de destruição maciça pelo selvagem do Saddam Hussein, tentando a administração americana, debalde, enganar o Mundo, mas enganando boa parte dos próprios concidadãos.
 
 Ou seja, Putin percebeu que a cúpula política norte-americana estava nas mãos de patifes notórios em que não se podia confiar. A Rússia violou o Direito Internacional? Sim, claro, fazendo uma guerra preventiva. 3. Por razões que me escapam, a cúpula política ucraniana, foi ou quis-se enredada nesta estratégia suicidária, sacrificando o povo aos interesses geo-financeiros dos EUA. As zonas de influência sempre existiram e continuarão a existir; faz parte do poder dos impérios.
 A União Europeia transformou-se numa vassala dos americanos e uma extensão política da Nato, um péssimo serviço ao projecto europeu.*
 
* Abencerragem