A SECA EXTREMA QUE NOS VEM ATINGINDO TEM POSTO A DESCOBERTO ALDEIAS INTEIRAS QUE AS BARRAGENS SUBMERGIRAM.
AQUI FICA O SENTIR DE JOÃO DE ARAÚJO CORREIA, NUMA CRÓNICA DOS ANOS 60.
A COMIDA DA ÁGUA
[...]Água
de albufeira também come. Não se lhe dá de sepultar, no fundo do seu
ventre, casas que foram vida, árvores em que a vida resplandeceu,
estradas e caminhos trabalhados de mil vidas durante mil gerações e até
monumentos que testemunharam a passagem do homem num minuto de sonho.
Mas, ao passo que a água, tombada do céu, tem o poder de digerir o pão
que leva à boca, a água artificiosa, represada, não o digere. É terreno
que não desfaz cadáveres. É cemitério de santos, se é que os santos
permanecem inteiros depois de sepultados. Igrejas, se algum refluxo as
desafoga, chamam de novo à oração.
Tem ar de cemitério uma albufeira. E, quanto maior for, mais cemitério é. Cemitério líquido...
Não
me sai do pensamento uma represa que absorveu metade de um país.
Passei, confrangido, ao longo das suas margens como entre campas,
recordando mortos. É que só ouvi silêncio... Só ouvi silêncio e só vi
água. Não vi lenho, nem vela, nem rede de pescador. Não vi nada ... Nem
saia de lavadeira, com a luz do sol desfeita em cores, nem roupa de
moleiro, toda enfarinhada. Não ouvi nenhum som, nem eco de nenhum som.
Nem o murmúrio das águas, nem a voz do barqueiro... Nem cântico de
passarinho... Passeei, nas margens da albufeira, como se pisasse o
saibro de campo santo abandonado. Apenas lobriguei, debaixo de água, um
campanário intacto. e creio que ouvi o sino. Foi quanto me valeu para
não morrer fulminado com semelhante mutismo. [...]
13jun1968.
in ECOS DO PAÍS