O que dizem os Diários de Salazar?
10 dez, 2021 - 19:41 • Maria João Costa
São 72 livros, mais de 6.500 páginas manuscritas que contam 13 mil dias na vida de António Oliveira Salazar. Os ‘Diários de Salazar’ estão agora transcritos e reunidos em ebook. A arquivista Madalena Garcia revela como ler a letra de Salazar.
Madalena Garcia que vê agora o seu trabalho ser disponibilizado em formato digital, numa parceria entre a Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas e a Porto Editora sente que fez este “trabalho útil” para “servir os historiadores”. Esquivando-se a dar a sua opinião sobre Salazar, a arquivista de origem açoriana fala da “responsabilidade brutal” com que assumiu esta missão. Entre os detalhes agora revelados fica-se a saber em que década se intensificaram os encontros entre Salazar e Marcelo Caetano.
É um conjunto de 72 livros manuscritos que constituem o que o próprio Salazar designou por Diários. Começaram a ser escritos no dia 1 de janeiro de 1933, até 6 de setembro de 1968. É um conjunto que corresponde a uma série do Arquivo Salazar, considerado pelos historiadores como o arquivo mais importante para o estudo do Estado Novo. É constituído por várias séries documentais e os Diários são uma dessas séries.
A Madalena Garcia tem dedicado as últimas décadas a este arquivo. Que notas estão nestes Diários? Há um lado do estadista e outro lado mais pessoal?
É essencialmente um documento de Estado, de função. Aliás, é uma caraterística que me parece que tem a ver com o exercício de funções por parte de Salazar, com a sua personalidade, a forma como o poder era exercido e pela concentração do próprio poder. A parte de caráter pessoal é muito insignificante, do meu ponto de vista. É residual. É iminentemente um documento de exercício de funções governativas.
Esses diários eram agendas ou cadernos?
Não são agendas. Aí há um equívoco. As agendas são documentos onde se anotam antecipadamente os assuntos. Neste caso, é precisamente o contrário. Os Diários referem todos os acontecimentos, as conversas, as reuniões que efetivamente ocorreram. São escritos a posteriori, no final do dia. Aliás, os Diários de 1933 a 1939 eram ditados por Salazar à Dra. Emília Ferreira que foi secretária dele no Ministério das Finanças desde 1928 e que o acompanhou até ao fim da vida política e ativa. Os Diários estavam manuscritos por ela até 1939. A partir de 1939, Salazar começa a escrever ininterruptamente até 1968. São muito sucintos, muito densos. Não há comentários. É muito factual. É um documento chave para se estabelecer conexões. É ilimitado o uso que os historiadores poderão fazer.
Resolvi fazer este trabalho para servir os historiadores
Que tipo de trabalho é que os historiadores poderão agora fazer a partir destes documentos?
Dou-lhe um exemplo. É possível saber, nas quatro décadas que abarcam os Diários, qual foi a frequência de contatos que Salazar teve. O professor Marcelo Caetano aparece na década de 1940 em vigésimo terceiro lugar. Na década de 1950 já aparece em quarto lugar das pessoas que mais foram recebidas por Salazar. Eu só me atrevi a fazer este trabalho, porque tinha há 30 anos inventariado o Arquivo Salazar e tinha tido necessidade de estudar as várias componentes do arquivo. Isto é válido para o número de pessoas que recebia, como para as ocorrências relativas a determinados assuntos, como as reuniões no período da Guerra Civil de Espanha, na II Guerra Mundial ou para os mais variados assuntos. É uma fonte primordial. É um documento que nós arquivistas chamamos de ‘primário’, escrito em primeira mão, um original. É uma chave para uma série de outros assuntos.
O que é que estava inédito destes Diários?
O Diário está online na Torre do Tombo há 13 anos. E muitos historiadores têm vindo a usar o Diário nos seus trabalhos, mas eu recebia constantemente pedidos de historiadores para ajudar na leitura, porque eu tinha familiaridade com a letra. E eu resolvi fazer este trabalho para servir os historiadores, porque é uma fonte muito importante. Abarca um período da História muito vasto e importante, onde o distanciamento do poder era aquele que nós sabemos e, portanto, há um interesse enorme da parte de jovens historiadores. Foi para poder servir os historiadores que fiz este trabalho.
Abrindo estas páginas vemos por exemplo, as notas que fez, nomeadamente quanto ao número de vezes que determinada pessoa aparece no Diário ou uma breve biografia de quem era. São dados importantes para ajudar os historiadores?
Penso que sim. É um dado estatístico. Do ponto de vista metodológico eu fiz um ficheiro em Excel em que registei as ocorrências de cada nome e quando concluiu eram 70 e tal mil ocorrências onomásticas. Muitas vezes essas ocorrências, eu depreendia pelo cargo que ocupava numa determinada data, porque era tudo muito sucinto. Socorri-me de instrumentos para verificar em determinada altura quem é que ocupava determinado cargo. Essas ocorrências é que deram origem ao tal ficheiro de 4600 nomes. Por exemplo, Mário Pais de Sousa aparece 2150 vezes. É evidente que não consegui identificar 100% das pessoas. Há casos em que deixo um ponto de interrogação, mas procurei sempre fazer um esforço muito grande para dar a data de nascimento, de morte, e esses dados. Socorri-me de bases de dados de universidades estrangeiras e de contatos que me ajudaram, dentro e fora do país, para, sempre que possível, fazer a identificação.
Salazar tinha uma letra "muito complicada"
Em muitas páginas destes Diários vemos a expressão "Trabalho Só". O que é que isto queria dizer?
Seria para redigir documentos importantes, presumo eu. Seria a necessidade de ter esse espaço para preparar documentos importantes
Há pouco referiu a questão da letra. Os últimos anos dos Diários são manuscritos por Salazar. Como era a letra dele?
A letra era muito complicada, difícil. Nos períodos mais intensos, em alturas em que há muitas reuniões, os assuntos eram mais complexos, a letra ressente-se de tudo isso. É mais denso. Quando ele começa a escrever, a partir de 1939, a intensidade, os Diários estão mais cheios do que foram até essa altura, quando ele ao fim do dia ditava à Dr. Emília Ferreira.
Tem vindo a trabalhar neste arquivo, primeiro quando ele integrou a Biblioteca Nacional, depois quando foi para a Torre do Tombo. É uma missão de uma vida?
Não. São coincidências que a vida traz. Não encaro como uma missão. Tinha feito um estágio, uma pós-graduação de bibliotecária e arquivista em Coimbra, depois quis fazer um estágio de um ano na Torre do Tombo. Poderia ter tido dispensa do estágio, mas não quis porque queria mudar para a área de arquivos. E coincidiu ter aberto um concurso na Biblioteca Nacional e eu ser, das várias pessoas que entraram em 1981, a única que trazia um ano de estágio na Torre do Tombo, num arquivo. Por coincidência, o Arquivo de Salazar tinha transitado de São Bento para lá uns meses antes. Era diretor da Biblioteca o Dr. João Palma Ferreira e eu fui destacada para esse trabalho.
Com que espírito aceitou trabalhar o Arquivo de Salazar?
É evidente que na altura, foi uma responsabilidade brutal e procurei de imediato contatar arquivos e colegas que no estrangeiro tivessem experiência. Contatei os arquivos presidências americanos, os franceses, o arquivo do Churchill em Cambridge, uma vez que aqui havia uma reserva. O Arquivo Salazar não estava aberto ao público, e eu não tinha contatos com outros arquivistas cá em Portugal. Estava a trabalhar na Biblioteca Nacional, eu e o Dr. Miguel Silva Marques - que fazia mais o trabalho de carimbagem e arrumação das caixas. Procurei ter, o mais possível, experiências com arquivos de figuras públicas e políticos e foi, a partir daí, que fui mantendo contatos e fui fazendo o meu trabalho. Estudando muito.
O trabalho de uma vida foram mais os arquivos. Este dos Diários foi de uma responsabilidade maior. Eu quando acabei o inventário dos arquivos fui trabalhar com o professor José Mattoso. Fomos criar o Instituto Português de Arquivos que não existia. Saí da Biblioteca Nacional, fui para a Torre do Tombo, fui subdiretora. Enfim, funções na área dos arquivos até à minha reforma. E depois de me reformar, há 10 anos, é que eu iniciei este trabalho intensamente. Achei que era um trabalho útil que eu poderia deixar aos historiadores.
Teve quase um trabalho secreto. Porque quando começou a trabalhar o Arquivo Salazar ele não era público.
Exatamente. Era a condição. Só dois ou três anos depois de eu lá estar é que foi criada a Comissão do Livro Negro do Fascismo. O professor Fernando Rosas e o Dr. César de Oliveira, porque pertenciam a essa comissão, tinham acesso, mas era uma coisa a título excecional. Não havia, mesmo da parte de ninguém da Biblioteca Nacional acesso. Era um trabalho sobre sigilo.
Ao fim de todo este tempo de trabalho com o Arquivo Salazar, qual é a sua avaliação sobre esta figura que marcou a História de Portugal?
O meu trabalho é dedicado. O inventário que foi publicado pela Estampa em 1992, eu dediquei esse trabalho aos historiadores de História Contemporânea de Portugal. E este trabalho agora da transcrição dos Diários faço a mesma coisa. Os investigadores, sejam historiadores, jornalistas ou outro tipo de pessoas, farão esse juízo. O arquivista disponibiliza, torna acessível a matéria prima para outro tipo de pessoas cruzarem informação. A nossa função é clareza, rigor, respeito por disponibilizar a fonte da forma o mais rigorosa possível. Mas depois a especulação, não é função do arquivista no meu entendimento.