Em tempos de aniversário e de tréguas, acompanhamos Miguel Dantas da Gama numa inesquecível travessia por um excepcional rincão de natureza.
Hoje ficam de lado os pesadelos que impedem que esse lugar que há muitos anos se entranhou, cenário de um sonho por concretizar, se transforme num reduto de natureza exemplar onde de forma harmoniosa e pacífica se acolham pequenas comunidades humanas e onde todos possamos continuar a aprender como convivem plantas e animais selvagens na complexa cadeia de compromissos de que eles e nós, humanos, dependemos. Pesadelos que há muito motivam tantos debates sobre conflitos, interesses e até vaidades.
Por um momento esqueço os fogos e a caça, a insaciedade com que nós, vivendo dentro, fora, ou fora e dentro de uma área classificada, queremos consumir a sua natureza. Esqueço o recorrente, cobarde, inqualificável e impune abate de lobos, azevinhos e outros seres (também) vivos que já aqui moravam antes do homem moldar o território à sua maneira, quase sempre de uma forma em que parece que apenas ele existe e só ele tem o direito de ditar todas as regras. Desta vez ficam de fora a revolta de proprietários de gado que se sentem injustiçados, frequentemente sem razão, e o discurso de alguns amantes dos «bichos daninhos» cegos por paixões e que por desconhecimento de uma realidade ou inibidos por interesses próprios, tão diversos quanto particulares, promovem debates, azedos e vazios de conteúdo.
Por norma coloca-se o dedo apenas nas feridas que em cada caso convêm e não na globalidade das abertas por todos nós. E a regra é estar-se contra, mas essencialmente contra quem se manifesta contra os respectivos interesses. Quantos estão realmente a favor deste território e do que importa salvaguardar por ser do interesse comum?
Um aniversário de cinquenta primaveras justifica uma trégua, uma travessia, que apesar de breve, pode ser um sonho desperto se levarmos em conta que o que percorremos é um excepcional rincão de natureza.
No extremo ocidental do território, do topo de um proeminente penhasco, um planalto alto-minhoto de horizontes distantes expande-se para norte e nascente. Com a chegada da primavera que já se anuncia, vai cobrir-se de flores exuberantes. São pequenas na dimensão mas muitas delas são grandes preciosidades a que se irão juntar aves também valiosas, algumas provenientes de paragens longínquas.
Para poente, entre cumeadas sucessivas, medram carvalhos-negrais em manchas interrompidas por reduzidos aglomerados urbanos, antigas brandas, algumas bem conservadas. Na progressão para poente, em terreno acidentado ganha-se altura até às encostas mais elevadas. A partir daí, progredindo para sul, percorre-se a espinha dorsal de uma das maiores serras deste paraíso. Entre dois vales muito cavados.
No do lado nascente corre um rio raiano e para lá do que fica a poente, terra de povoados dispersos e de um inóspito santuário, acompanha-nos uma cumeada ainda mais alta, coroada por vários domos que se divisam de longe. Os vales vão convergindo até se encontrarem sob uma parede lisa, muito vertical, de cujo extremo, olhando o abismo, vemos águas que ganharam nome porque se misturam. Ainda são livres e têm força selvagem.
Um pouco a jusante a mudança é brusca. O rio, assim formado, desemboca num outro que nasce galego, mas ambos estão apresados por um gigantesco muro, um dos muitos com que o homem neste paraíso barrou muitas águas que se queriam bravias.
Para sul, uma nova serra se ergue. No percurso até ao seu cume, por uma das linhas de festo, deslumbramo-nos com uma mata acoitada numa das mais profundas ravinas de Entre Douro e Minho, um dos santuários que no paraíso devia ser venerado. Nos seus redutos mais inacessíveis, em resquícios de uma vegetação primitiva albergam-se animais esquivos. No topo da serra, desse Muro, junto a muitos outros, de fojos e de demais limites criados pelo homem, olhamos o sul e o que vemos é a melhor mancha lusa de carvalho-alvarinho. Palco de muitas histórias, algumas extraordinárias, que importa enaltecer neste percurso de tréguas em tempo de aniversário. Um mundo de árvores antigas de inúmeras espécies, originárias de épocas diversas, aliadas em coexistências raras e por isso lar de animais e outras plantas numa profusão que não se repete noutras paragens.
Já bem no seio desta mata maior, impele-nos uma vontade imensa de rodarmos para nascente, um ímpeto extremo que nos faz subir para os cabeços altaneiros do paraíso, na serra que com mais nome o glorifica.
Desses picos e cornos graníticos nada se interpõe contra o céu. Daqui partem as águas mais puras e frias, outrora aprisionadas em glaciares. Se rumássemos a sul embrenhávamo-nos numa montanha guardiã de ravinas, medas, grandes penhascos, cursos de água bravios em corgas sombrias, íngremes e sinuosas. Entre os mais recônditos interstícios de um relevo caótico encontram-se resquícios de tesouros que constantemente atormentam, porque lembram a urgência em defender, recuperar e preservar o que resta. Hoje não há tempo para os nomear. Nem é ocasião para renovar lamentos.
Prosseguindo pelo tecto do paraíso para nascente alcança-se o outro planalto, o transmontano, de novo uma terra de horizontes a perder de vista, importante para plantas e animais e para cuja beleza contribui o enorme contraste que gera com as agrestes, recortadas e altivas serranias há pouco transpostas.
Foi uma travessia apressada porque o paraíso entre o Laboreiro e a Mourela, para ser bem contado, não cabe numa crónica breve.
Desta vez, a evocação do aniversário de meio século é dedicada aos que deste paraíso «apenas» reclamam o direito ao silêncio, só quebrado por brisas e águas revoltas, berros de corço, uivos de lobo, pancadas secas entre hastes reixelas e cantos de aves de montanha. E também pelo relinchar das burras, o mugir das vacas e o berro de cabras e ovelhas propriedade apenas dos que vivem num paraíso que por isso devem achar-se privilegiados.
Lembrando que aqui pode subsistir um espaço para se sentir como era antes, antes deste louco frenesim em que o ser humano tudo reclama e quer consumir, numa corrida rápida e devastadora. E sem nunca esquecer que o que neste e noutros paraísos, também os adoradores do silêncio – uma tribo a que pertenço – procuram, tem que perdurar para além do tempo em que lhes é concedido tão grande privilégio.
O Parque Nacional da Peneda-Gerês foi criado há 50 anos e as celebrações decorrem até 8 de Maio de 2021. Até lá, Miguel Dantas da Gama, profundo conhecedor desta área protegida, vai aproximar-nos deste recanto único no nosso país.
Hoje, este Parque Nacional abrange os concelhos de Arcos de Valdevez, Melgaço, Montalegre, Ponte da Barca e Terras de Bouro. As matas do Ramiscal, de Albergaria, do Cabril, todo o vale superior do rio Homem e a própria serra do Gerês são um tipo de paisagem que dificilmente encontra em Portugal algo de comparável.