Este blogue é pessoal e sem fins lucrativos. Se sentir que eu estou a infringir os seus direitos de autor(a) agradeço que me contacte de imediato para eu corrigir o referido conteúdo: / This blogue is a non-profit and personal website. If you feel that your copyright has been infringed, please contact me immediately: pintorlopes@gmail.com

7.11.20

AS COUTADAS REAIS NOS SÉCULOS XVIII - XIX

Em finais do século XVIII era frequente a Família Real e a Corte ocuparem grande parte do ano em jornadas de caça, que aconteciam mesmo em Lisboa, na Ajuda, em Alcântara e em Belém. Porém, na maior parte dos casos, deslocavam-se “Suas Majestades” a Salvaterra, Samora Correia, Queluz, Mafra, Óbidos ou Vila Viçosa. “A Rainha-mãe ocupou algum tempo na caça, em que matou muitas reses”, em Vila Viçosa; “El Rei N. Senhor se emprega frequentemente no exercício da caça”, em Salvaterra – estes eram relatos corriqueiros da Gazeta de Lisboa, entre 1778 e 1800. Esta frequente actividade era levada a efeito em zonas privilegiadas, as Coutadas Reais. 
 Em traços gerais, no final do século XVIII as coutadas reais ocupavam uma área em torno de Lisboa e na região Centro Litoral do país, que se estendia de Cantanhede a Alcácer do Sal, passando por Coimbra, Tomar, Abrantes, Ponte de Sor, Coruche e Montemor-o-Novo. Existiam depois outras zonas coutadas, como Vila Viçosa, frequentemente visitadas por D. Maria I e pelo príncipe D. João, futuro D. João VI, bem como por outros monarcas.

 


Daniel Alves
 

Durante os séculos XVIII-XIX a caça deteve um estatuto relevante como actividade da monarquia nacional. Conheça como estava regulamentada a constituição e usufruto das coutadas e as suas implicações na subsistência das populações locais.

 

 

Foram estabelecidos dois tipos distintos de coutadas, as de caça e as de mata. As primeiras existiam enquanto espaço régio exclusivo dedicado àquela actividade. As segundas tinham como objectivo primordial o abastecimento de madeiras para a armada e arsenais da coroa. Se, por um lado, o regime de coutada e toda a legislação a ele ligada constituíram, desde a Idade Média até ao século XIX, um sistema de protecção e conservação dos recursos naturais, cinegéticos e florestais, em amplas áreas geográficas do país, por outro, resultaram num privilégio dos monarcas e da alta nobreza que entrava, frequentemente, em conflito com os interesses das comunidades locais.

A par deste sistema legislativo especial, durante todo o Antigo Regime (séc. XVI-XIX), manteve-se também o regime jurídico geral. Este adoptava o princípio de res nulius, do direito romano, que, no que diz respeito à regulamentação da caça, estabelecia que o proprietário de determinado terreno não era proprietário dos animais bravios que aí circulavam livremente. O direito de propriedade sobre as espécies cinegéticas só era, então, adquirido pelo caçador no momento em que as perseguia, feria ou matava.

Por sua vez, o regime de coutada atribuía o exclusivo da propriedade das espécies cinegéticas e, também, da exploração dos recursos florestais, no caso das coutadas de mata, ao proprietário da base fundiária, excluindo moradores, rendeiros e foreiros. Era, assim, um sistema de privilégio, que competia em exclusivo ao monarca gerir, uma vez que só ele, desde o tempo de D. João I e até ao final do Antigo Regime, tinha o direito de instituir uma coutada.

 


O direito cinegético e florestal do regime geral, nos finais do século XVIII e princípios do XIX, encontrava-se estabelecido, essencialmente, nas Ordenações do Reino. Estas atribuíam às autoridades locais (câmaras) e regionais (corregedores) a obrigatoriedade de promover, fomentar e mesmo executar o plantio de árvores para produção de madeira e frutos. O corte de árvores de fruto, ou de árvores que estavam destinadas a produzir madeira para as armadas reais, era punido com a pena de açoites e de dois anos de degredo. Eram igualmente interditos os fogos florestais, sendo os incendiários castigados com “açoites, baraço e pregão pelas vilas” e com o pagamento de multas aos proprietários. As zonas queimadas por fogos de origem criminosa eram interditas ao pastoreio por um período até dois anos.

Em relação à caça, a que era feita a animais de pequeno porte, como o coelho e a lebre era, no geral, permitida, com a excepção das comarcas da Estremadura, Alentejo e Guadiana, nas quais só podia caçar aqueles animais quem tivesse “aquele grau de nobreza civil”. Em Lisboa só o rei podia usar matilhas de galgos para caçar lebres e era proibida a caça “com munição” a qualquer tipo de aves. A caça só era permitida aos animais no estado adulto e não durante o período de reprodução.

Era igualmente definida uma protecção para o proprietário das terras, sendo interdita a entrada de caçadores e dos seus cães em terrenos utilizados para o cultivo. Era sancionada a invasão de propriedade por parte dos caçadores “contra vontade dos seus respectivos donos”, podendo os mesmos prender de imediato os invasores. Se estes entrassem armados e ferissem alguém ficavam sujeitos a uma pena de dez anos nas galés, se fossem peões, ou de degredo em Angola, se fossem nobres.


Em relação ao exercício à caça maior parece não terem existido restrições à sua prática fora das coutadas, ressalvando-se as épocas de caça. No que diz respeito aos predadores, em especial aos lobos, as batidas não eram proibidas no período de reprodução e eram mesmo incentivadas, sendo atribuídos prémios monetários a quem os matasse.

O regime jurídico das coutadas encontrava-se definido, essencialmente, em Regimentos particulares, destacando-se os de 1605 e de 1800, e em alguma legislação dispersa. Para gerir e defender as coutadas tinha sido criado, em 1521, o cargo de Monteiro-mor do Reino, exclusivamente para membros da alta nobreza portuguesa. A ele competia administrar as áreas coutadas, dispondo para isso de um corpo militarizado e de um conjunto de magistrados próprios que constituíam a Montaria-mor. Tinha como objectivos principais vigiar as coutadas de mata e caça, mas também garantir um correcto ordenamento florestal e gestão cinegética. Assim, ao abate de árvores deveria seguir-se uma florestação sistemática. Mesmo o abate nas áreas abrangidas pelo regimento das coutadas só podia efectuar-se mediante autorização expressa do rei. Não era permitida a recolha de matos, madeiras ou frutos por parte das populações locais. Era igualmente proibido o pastoreio, chegando este a ser punido com “perpétuo degredo para Angola”.

Nas coutadas de caça o rei tinha o exclusivo da caça maior, nomeadamente, veado e javali. Em relação à caça menor, só ele podia usar armas de fogo na caça às perdizes e em algumas coutadas era proibida a utilização de cães. Este exclusivo na caça às perdizes, actividade muito apreciada pelos monarcas, levou mesmo a situações curiosas. Aquando das Invasões Francesas, entre 1807 e 1812, a família real refugiou-se no Brasil. Para não perder contacto com o seu desporto favorito, D. João VI exigiu ao Monteiro-mor do Reino uma remessa anual de 68 perdizes para o Rio de Janeiro.

 


As penas para quem fosse apanhado a caçar nas coutadas sem a devida autorização régia eram pesadas, chegando, a partir de 1733, a definir-se pena de morte para aqueles apanhados em flagrante “delito de caça” e que resistissem à prisão.

Como é óbvio, este regime especial entrava em conflito com as populações que viviam nas áreas sujeitas a coutada, ou próximo das mesmas. Viam-se, assim, privadas do acesso aos recursos florestais e ao exercício da caça que constituíam, por vezes, um complemento essencial da sua subsistência. Esta situação levou a permanentes litígios e a uma constante transgressão das normas e leis estabelecidas para aqueles espaços, definidos como espaços de lazer para a monarquia. Eram constantes os fogos postos, a caça furtiva e o contrabando neste período de final do Antigo Regime. Crimes praticados pelas populações locais, mas também, por vezes, pelos próprios funcionários da Montaria ou com a conivência dos mesmos.

 
 No caso das madeiras, por exemplo, o “mestre dos cortes” marcava mais árvores para abate do que as que eram definidas por ordem do Monteiro-mor; os restantes funcionários responsáveis pela fiscalização fechavam os olhos e o “mestre dos barcos” “não se importava” de levar uma carrada a mais no transporte para Lisboa.

Os fogos eram postos com o intuito de abrir pastagens, mas também para fazer sair os animais dos seus esconderijos e, assim, facilitar a sua caça. Para além deste esquema, os caçadores furtivos não se coibiam de utilizar outros mais expeditos, como a utilização do nome dos oficiais da Montaria para conseguir contornar as patrulhas que vigiavam as coutadas, uma vez que estas não tinham, na maior parte das vezes, possibilidade de confirmar no momento a veracidade das informações.

Era um verdadeiro jogo do gato e do rato. Por um lado a Montaria-mor a procurar preservar o património florestal e cinegético das coutadas e, simultaneamente, o privilégio régio de utilização e usufruto do mesmo com fins económicos e de lazer; por outro as populações procurando subtrair-se a mais esta forma de opressão senhorial e utilizando de forma furtiva os recursos naturais importantes para a sua subsistência.

Com a Revolução Liberal procurou-se acabar com o sistema de coutadas, tendo mesmo sido promulgado um decreto que extinguia o cargo de Monteiro-mor, em 18 de Agosto de 1821. Porém, este fervor revolucionário foi interrompido logo em 1823 e no ano seguinte tudo tinha voltado à situação inicial. Só em 1834, após a vitória do Liberalismo, é extinta definitivamente a Montaria-mor do Reino, depois de mais de 300 anos de história.

TEXTO.  Cristina Joanaz de Melo (2000). Coutadas Reais (1777-1824). Privilégio, Poder, Gestão e Conflito. Lisboa, Montepio Geral.