Em finais do
século XVIII era frequente a Família Real e a Corte ocuparem grande
parte do ano em jornadas de caça, que aconteciam mesmo em Lisboa, na
Ajuda, em Alcântara e em Belém. Porém, na maior parte dos casos,
deslocavam-se “Suas Majestades” a Salvaterra, Samora Correia, Queluz,
Mafra, Óbidos ou Vila Viçosa. “A Rainha-mãe ocupou algum tempo na caça,
em que matou muitas reses”, em Vila Viçosa; “El Rei N. Senhor se emprega
frequentemente no exercício da caça”, em Salvaterra – estes eram
relatos corriqueiros da Gazeta de Lisboa, entre 1778 e 1800. Esta frequente actividade era levada a efeito em zonas privilegiadas, as Coutadas Reais.
Em
traços gerais, no final do século XVIII as coutadas reais ocupavam uma
área em torno de Lisboa e na região Centro Litoral do país, que se
estendia de Cantanhede a Alcácer do Sal, passando por Coimbra, Tomar,
Abrantes, Ponte de Sor, Coruche e Montemor-o-Novo. Existiam depois
outras zonas coutadas, como Vila Viçosa, frequentemente visitadas por D.
Maria I e pelo príncipe D. João, futuro D. João VI, bem como por outros
monarcas.
Durante
os séculos XVIII-XIX a caça deteve um estatuto relevante como
actividade da monarquia nacional. Conheça como estava regulamentada a
constituição e usufruto das coutadas e as suas implicações na
subsistência das populações locais.
Foram estabelecidos dois tipos distintos de
coutadas, as de caça e as de mata. As primeiras existiam enquanto
espaço régio exclusivo dedicado àquela actividade. As segundas tinham
como objectivo primordial o abastecimento de madeiras para a armada e
arsenais da coroa. Se, por um lado, o regime de coutada e toda a
legislação a ele ligada constituíram, desde a Idade Média até ao século
XIX, um sistema de protecção e conservação dos recursos naturais,
cinegéticos e florestais, em amplas áreas geográficas do país, por
outro, resultaram num privilégio dos monarcas e da alta nobreza que
entrava, frequentemente, em conflito com os interesses das comunidades
locais.
A par deste sistema legislativo especial,
durante todo o Antigo Regime (séc. XVI-XIX), manteve-se também o regime
jurídico geral. Este adoptava o princípio de res nulius, do
direito romano, que, no que diz respeito à regulamentação da caça,
estabelecia que o proprietário de determinado terreno não era
proprietário dos animais bravios que aí circulavam livremente. O direito
de propriedade sobre as espécies cinegéticas só era, então, adquirido
pelo caçador no momento em que as perseguia, feria ou matava.
Por sua vez, o regime de coutada atribuía o
exclusivo da propriedade das espécies cinegéticas e, também, da
exploração dos recursos florestais, no caso das coutadas de mata, ao
proprietário da base fundiária, excluindo moradores, rendeiros e
foreiros. Era, assim, um sistema de privilégio, que competia em
exclusivo ao monarca gerir, uma vez que só ele, desde o tempo de D. João
I e até ao final do Antigo Regime, tinha o direito de instituir uma
coutada.
O direito cinegético e florestal do regime
geral, nos finais do século XVIII e princípios do XIX, encontrava-se
estabelecido, essencialmente, nas Ordenações do Reino. Estas atribuíam
às autoridades locais (câmaras) e regionais (corregedores) a
obrigatoriedade de promover, fomentar e mesmo executar o plantio de
árvores para produção de madeira e frutos. O corte de árvores de fruto,
ou de árvores que estavam destinadas a produzir madeira para as armadas
reais, era punido com a pena de açoites e de dois anos de degredo. Eram
igualmente interditos os fogos florestais, sendo os incendiários
castigados com “açoites, baraço e pregão pelas vilas” e com o pagamento
de multas aos proprietários. As zonas queimadas por fogos de origem
criminosa eram interditas ao pastoreio por um período até dois anos.
Em relação à caça, a que era feita a
animais de pequeno porte, como o coelho e a lebre era, no geral,
permitida, com a excepção das comarcas da Estremadura, Alentejo e
Guadiana, nas quais só podia caçar aqueles animais quem tivesse “aquele
grau de nobreza civil”. Em Lisboa só o rei podia usar matilhas de galgos
para caçar lebres e era proibida a caça “com munição” a qualquer tipo
de aves. A caça só era permitida aos animais no estado adulto e não
durante o período de reprodução.
Era igualmente definida uma protecção para o
proprietário das terras, sendo interdita a entrada de caçadores e dos
seus cães em terrenos utilizados para o cultivo. Era sancionada a
invasão de propriedade por parte dos caçadores “contra vontade dos seus
respectivos donos”, podendo os mesmos prender de imediato os invasores.
Se estes entrassem armados e ferissem alguém ficavam sujeitos a uma pena
de dez anos nas galés, se fossem peões, ou de degredo em Angola, se
fossem nobres.
Em relação ao exercício à caça maior parece
não terem existido restrições à sua prática fora das coutadas,
ressalvando-se as épocas de caça. No que diz respeito aos predadores, em
especial aos lobos, as batidas não eram proibidas no período de
reprodução e eram mesmo incentivadas, sendo atribuídos prémios
monetários a quem os matasse.
O regime jurídico das coutadas
encontrava-se definido, essencialmente, em Regimentos particulares,
destacando-se os de 1605 e de 1800, e em alguma legislação dispersa.
Para gerir e defender as coutadas tinha sido criado, em 1521, o cargo de
Monteiro-mor do Reino, exclusivamente para membros da alta nobreza
portuguesa. A ele competia administrar as áreas coutadas, dispondo para
isso de um corpo militarizado e de um conjunto de magistrados próprios
que constituíam a Montaria-mor. Tinha como objectivos principais vigiar
as coutadas de mata e caça, mas também garantir um correcto ordenamento
florestal e gestão cinegética. Assim, ao abate de árvores deveria
seguir-se uma florestação sistemática. Mesmo o abate nas áreas
abrangidas pelo regimento das coutadas só podia efectuar-se mediante
autorização expressa do rei. Não era permitida a recolha de matos,
madeiras ou frutos por parte das populações locais. Era igualmente
proibido o pastoreio, chegando este a ser punido com “perpétuo degredo
para Angola”.
Nas coutadas de caça o rei tinha o
exclusivo da caça maior, nomeadamente, veado e javali. Em relação à caça
menor, só ele podia usar armas de fogo na caça às perdizes e em algumas
coutadas era proibida a utilização de cães. Este exclusivo na caça às
perdizes, actividade muito apreciada pelos monarcas, levou mesmo a
situações curiosas. Aquando das Invasões Francesas, entre 1807 e 1812, a
família real refugiou-se no Brasil. Para não perder contacto com o seu
desporto favorito, D. João VI exigiu ao Monteiro-mor do Reino uma
remessa anual de 68 perdizes para o Rio de Janeiro.
As penas para quem fosse apanhado a caçar
nas coutadas sem a devida autorização régia eram pesadas, chegando, a
partir de 1733, a definir-se pena de morte para aqueles apanhados em
flagrante “delito de caça” e que resistissem à prisão.
Como é óbvio, este regime especial entrava
em conflito com as populações que viviam nas áreas sujeitas a coutada,
ou próximo das mesmas. Viam-se, assim, privadas do acesso aos recursos
florestais e ao exercício da caça que constituíam, por vezes, um
complemento essencial da sua subsistência. Esta situação levou a
permanentes litígios e a uma constante transgressão das normas e leis
estabelecidas para aqueles espaços, definidos como espaços de lazer para
a monarquia. Eram constantes os fogos postos, a caça furtiva e o
contrabando neste período de final do Antigo Regime. Crimes praticados
pelas populações locais, mas também, por vezes, pelos próprios
funcionários da Montaria ou com a conivência dos mesmos.
No
caso das madeiras, por exemplo, o “mestre dos cortes” marcava mais
árvores para abate do que as que eram definidas por ordem do
Monteiro-mor; os restantes funcionários responsáveis pela fiscalização
fechavam os olhos e o “mestre dos barcos” “não se importava” de levar
uma carrada a mais no transporte para Lisboa.
Os fogos eram postos com o intuito de abrir
pastagens, mas também para fazer sair os animais dos seus esconderijos
e, assim, facilitar a sua caça. Para além deste esquema, os caçadores
furtivos não se coibiam de utilizar outros mais expeditos, como a
utilização do nome dos oficiais da Montaria para conseguir contornar as
patrulhas que vigiavam as coutadas, uma vez que estas não tinham, na
maior parte das vezes, possibilidade de confirmar no momento a
veracidade das informações.
Era um verdadeiro jogo do gato e do rato.
Por um lado a Montaria-mor a procurar preservar o património florestal e
cinegético das coutadas e, simultaneamente, o privilégio régio de
utilização e usufruto do mesmo com fins económicos e de lazer; por outro
as populações procurando subtrair-se a mais esta forma de opressão
senhorial e utilizando de forma furtiva os recursos naturais importantes
para a sua subsistência.
Com a Revolução Liberal procurou-se acabar
com o sistema de coutadas, tendo mesmo sido promulgado um decreto que
extinguia o cargo de Monteiro-mor, em 18 de Agosto de 1821. Porém, este
fervor revolucionário foi interrompido logo em 1823 e no ano seguinte
tudo tinha voltado à situação inicial. Só em 1834, após a vitória do
Liberalismo, é extinta definitivamente a Montaria-mor do Reino, depois
de mais de 300 anos de história.
TEXTO. Cristina Joanaz de Melo (2000). Coutadas Reais (1777-1824). Privilégio, Poder, Gestão e Conflito. Lisboa, Montepio Geral.