Um naturalista português explica: florestas foram substituídas por
eucaliptos; e o campo desumanizou-se em favor da monocultura. Como isso
tornou a tragédia inevitável?
Há notícias de incêndios florestais em Portugal desde o século XII,
mas não eram devastadores, apesar de nessa altura não termos corporações
de bombeiros, nem os meios atuais para os combater.
Nessa altura, a
nossa floresta natural, que designamos genericamente por carvalhal, era
dominada por “folhosas” (árvores de folha caduca), não sempre-verdes e
resinosas, como os pinheiros, nem sempre-verdes e ricas em óleos
essenciais, como os eucaliptos.
Como é do conhecimento geral as resinas e
essências são altamente inflamáveis. Por isso, arde mais rápida e
facilmente um pinhal ou um eucaliptal do que um carvalhal.
Das causas que mais contribuíram para o derrube da nossa floresta
autóctone, foram os descobrimentos e respetiva expansão, pois eram
necessários entre dois mil a quatro mil carvalhos para construir uma
nau.
A frota da “Campanha de Ceuta” foi composta por duzentas a
trezentas naus, para a rota do comércio da Índia construíram-se
setecentas a oitocentas naus e para a ocupação do Brasil cerca de
quinhentas.
Portanto, durante essa época, foram derrubados mais de cinco
milhões de carvalhos.
Mais tarde, a instalação da rede ferroviária, que
exigiu enorme quantidade de lenha para as máquinas e travessas de
carvalho para assento dos trilhos, e a intensa pecuária também
constituíram relevantes contributos para o desaparecimento da nossa
floresta natural.
Na segunda metade do século XIX foram criados os Serviços Florestais,
para arborizar as nossas montanhas, praticamente desarborizadas.
Deu-se, então, início a uma floresta de produção mono-específica com o
pinheiro-bravo.
Hoje sabemos que não devíamos ter “pinheirado” desta
maneira monótona as nossas montanhas.
Mas, em pleno século XX, já com a
nossa enorme área de pinhal contínuo, quando havia fogos florestais,
eles não tinham as características devastadoras dos atuais.
Isto porque
as nossas montanhas estavam humanizadas não só pelo pessoal dos Serviços
Florestais, como também pelo povo que permanecia na zona do pinhal,
pois o pinhal dava-lhe o “mato” para a cama do gado, matéria
combustível, madeira e resina.
Desta maneira, os fogos florestais eram debelados logo no início,
pois o pessoal florestal e o povo estavam nas proximidades da
deflagração do sinistro.
Além disso, os Serviços Florestais estavam
também apetrechados com maquinaria e tecnologia suficientes para
debelarem os fogos florestais e os guardas-florestais, que viviam na
floresta, conheciam-na muitíssimo bem. Havia incêndios, mas nunca tão
devastadores e catastróficos como os atuais.
A desumanização das nossas montanhas teve várias causas. Uma, foi a
maneira como se deixou eucaliptar o país. Repetimos o que já tínhamos
feito com o pinheiro, mas com a gravidade de agora todos saberem que
isso não se devia fazer.
Como já dissemos, os eucaliptais, tal como os
pinhais (resinosos), também ardem melhor que as florestas de folhosas,
por produzirem essências.
Com o eucaliptal contínuo contribuiu-se estrondosamente para a
desumanização das nossas montanhas.
Com o pinhal, a população rural
estava lá, para colher a resina, para cortar o mato, para apanhar as
pinhas e lenha e para cortar um pinheiro.
Como os eucaliptos servem
quase exclusivamente para a indústria de celulose e como só dá cortes de
dez em dez anos, a população não fica no monte durante dez anos a olhar
para uma árvore à espera que ela cresça: vem-se embora e vai lá só de
dez em dez anos para o corte.
Além do grande contributo que o eucaliptal deu para a desumanização
do nosso meio rural, houve ainda mais fatores que contribuíram para
isso.
Um, foi o delapidar dos Serviços Florestais pelos sucessivos
governos, desde 1975.
Diminuíram drasticamente o número de
guardas-florestais e de técnicos florestais, degradando,
simultaneamente, não só o património construído (abandono das casas
florestais da montanha, com milhões de euros de prejuízo), como também o
património tecnológico desses serviços, que deixou de ser funcional.
Assim, além do povo, as nossas montanhas deixarem de ter guardas e
técnicos florestais, que com a sua tecnologia e experiência ajudavam a
apagar, de imediato, os incêndios no seu início, pois conheciam
muitíssimo bem a floresta e a montanha.
Não é com voluntários que se combatem adequadamente incêndios
florestais.
Tenho muita consideração por todo o voluntário, mas os
profissionais têm de estar sempre presentes em qualquer agremiação
voluntária.
Não se deve escamotear a verdade.
Não me recordo de mortes
de guardas e técnicos florestais em incêndios florestais. Este ano já
morreram vários bombeiros voluntários e arderam várias viaturas de
voluntários. Infelizmente, isto são fatos e não mentiras.
Finalmente, outro fator que contribuiu para a desumanização rural foi
a drástica mudança nos processos de agricultura e melhores condições de
vida. Antigamente, a charrua era puxada por animais.
Esses animais, no
inverno, ficando nas cortes por baixo das moradias, ajudavam a aquecer
as casas.
Por outro lado, era necessário roçar o mato dos pinhais para a cama
do gado, apanhar pinhas e lenha para combustível, mantendo-se os pinhais
mais limpos de material incandescente.
Os animais foram substituídos
pelos tratores ou outros veículos e as moradias passaram a ser aquecidas
com gás ou eletricidade.
Além disso a resina deixou de ser rentável e o
resineiro, uma presença florestal vigilante e dissuasora, quase
desapareceu.
Nas matas nacionais, também passou a haver acumulação de
material lenhoso inflamável, por falta de capacidade pessoal, técnica e
económica dos Serviços Florestais.
O resultado de tudo isto não foi apenas a desumanização, foi também a
acumulação de material lenhoso altamente inflamável (resinoso ou com
essências) nas florestas de produção (pinhais e eucaliptais), que foram
plantadas, praticamente, sem regra.
Assim, não só se tornou mais fácil a
deflagração de um incêndio, como também se propaga muito mais
velozmente pela acumulação de material inflamável e pela falta de
vigilância humana próxima, que era feita pelos Serviços Florestais e
pela população rural.
Como toda a gente sabe, os incêndios florestais no nosso país são
praticamente todos resultantes de ações humanas, por descuido, vingança,
piromania e, valha a verdade, por interesses inconfessáveis
. Considero
que os noticiários das televisões, com as figuras dos locutores tendo
como “pano de fundo” imagens dos incêndios durante todo o noticiário,
incentiva os pirómanos.
É de todos conhecida a “estranheza” da maioria
dos incêndios se iniciarem durante a noite e quase simultaneamente em
vários locais.
Toda a gente sabe que, quando se noticia um suicídio, não
se devem mostrar imagens, pois estas constituem um fator precipitador
de suicídios em doentes mentais com tendência suicida.
Além de terem acabado com os Serviços Florestais, “obrigaram” o povo a
abandonar os montes por estarem eucaliptados.
Correia da Cunha bem
demonstrou que Portugal estava a ficar demográficamente desequilibrado,
mas os políticos não o quiseram ouvir (aliás, não convinha). Já que não
querem humanizar minimamente as montanhas com vigias durante o Verão, ao
menos façam a ordenamento do território.
Ribeiro Telles e tantos outros bem têm alertado para esta urgência,
mas, igualmente, os governantes nada têm feito. Arranjam sempre
desculpas de vária ordem, quando a única razão para que isso ainda não
tenha sido feito é não só porque dá imenso trabalho, como também porque
daria muitos problemas com os proprietários rurais.
Além disso, os
resultados de um trabalho desses não são imediatos, o que é mau para
“angariação” de votos nas eleições seguintes.
Enquanto não se reorganizarem convenientemente (com profissionais e
tecnologia adequada) os Serviços Florestais e não se efetuar o devido
ordenamento do território, vamos continuar a ter “piroverões”,
noticiados de modo inqualificável pelas televisões, por continuarmos a
ter governantes incapazes, que não estão para ter trabalho e
aborrecimentos.
Assim, a consequência final será realmente a desertificação, com as
nossas montanhas cobertas de rocha nua, pois sem vegetação o solo é
completamente arrastado pelas águas pluviais.
JORGE PAIVA ” PÚBLICO” ( PORTUGAL) / PUBLICADO NO BRASIL ” JORNAL GGN”
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* Publicado originalmente no jornal Público, em 2013, este texto foi reproduzido pela revista digital Buala em 18/6/2017.
Nascido em 1933, em Angola, Jorge Paiva Jorge Paiva é licenciado em
Biologia e doutorado em Recursos Naturais e Meio Ambiente. Foi
investigador principal (hoje aposentado) na Faculdade de Ciências da
Universidade de Coimbra; foi também professor convidado na Faculdade de
Farmácia da Universidade de Coimbra, e nas Universidades de Aveiro, da
Madeira, Vasco da Gama (Coimbra) e Vigo (Espanha). Sua atividade
científica e em defesa do meio ambiente foi já distinguida com vários
prémios. Publicou trabalhos sobre filotaxonomia, palinologia,
biodiversidade e ambiente. Apresentou variadas comunicações e proferiu
diversas conferências em congressos e ações pedagógicas.